Trilhando novos caminhos: Viva ao Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha
por Taya Nicaccio*
A revolução da moda é o presente e o futuro. E qual é a moda queremos? Neste dia 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha; Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, saudamos as nossas ancestrais e celebramos a nossa existência enquanto mulheres negras, latino-americanas e caribenhas.
Relembrar os meus ancestrais me remete a memórias e afetividades. Falando em memórias, em 1983 acontece no Peru o II Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, e quatro mulheres do Rio de Janeiro acolheram a tarefa de levantar a questão da discriminação racial como um fator de desigualdade entre as mulheres, além da desigualdade de classe. Com essa missão, ganharam a simpatia de outras mulheres negras e indianas também presentes ao encontro, que decidiram se juntar às brasileiras. Dessa reunião resultou o Comitê de Mulheres Latino-Americanas e Caribenhas contra a Discriminação Racial. Revolucionando o presente e o futuro, e para dar visibilidade à luta das mulheres negras contra a opressão de gênero, a exploração e o racismo, foi instituído em 1992 o Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, por ocasião do primeiro Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas – organizado em Santo Domingo, República Dominicana – data reconhecida pela Organização das Nações Unidas no mesmo ano.
E como não celebrar este dia sem citar ou falar sobre o legado de Lélia Gonzalez? Filósofa, antropóloga, professora, escritora, militante do movimento negro e feminista precursora, Lélia Gonzalez foi uma mulher a frente do seu tempo e uma das maiores intelectuais brasileiras do século XX. Através de um feminismo afro-latino-americano, Gonzalez atuou de forma decisiva na luta contra o racismo e na articulação entre gênero e raça em nossa sociedade. “A autora apresenta posições firmes hoje talvez comuns entre intelectuais e ativistas brasileiras experientes na história política e na cultura brasileira, mas que à época causaram certa perplexidade, já que vários processos ainda não tinham se desenhado de forma definitiva na nossa jovem democracia. No seu conjunto, a obra de Lélia Gonzalez não faz uso apenas da literatura brasileira, buscando refletir com e a partir dos pensadores e das pensadoras de países africanos, dos Estados Unidos, da Europa, da América Latina e do Caribe.” — Flavia Rios e Márcia Lima na introdução de “Por um feminismo afro-latino-americano”
Para a historiadora Melina de Lima, neta de Lélia Gonzalez, sua avó viveu e lutou para apontar a existência e a crueldade do racismo e do machismo: “ E a melhor forma de fazer isso, foi escrevendo sob o ponto de vista dela, uma mulher negra. Uma das grandes características de Lélia foi justamente o caminhar por várias áreas. Ao dominar História, Geografia, Antropologia, Linguística, Psicanálise e outras, conseguiu apontar o que hoje chamamos de ‘Racismo Estrutural’. Ela mostrou que precisamos discutir e debater o racismo e o machismo para poder combater esses males; ela mostrou a importância do conhecimento como luta”. E para além disso: “Fez questão de expor que o que passamos no Brasil também passaram por toda a América Latina, que nossas lutas são as mesmas. Se não apontarmos a existência e a manteneção desses males, não chegaremos a uma efetiva democracia.”, diz Lima em entrevista ao Fashion Revolution Brasil.
E por que falar de moda, gênero e raça?
No dia de hoje, também saudamos e celebramos o Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra – em homenagem à líder quilombola e inspirado no Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, a ex-presidente Dilma Rousseff fez da data celebração nacional e em 2014 entrou em vigor a Lei Federal 12.987/2014.
A africana Tereza de Benguela chegou ao Brasil escravizada por volta de 1730, trazida para a região das minas de Vila Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso. Constituído por africanos e indígenas fugidos das Novas Minas, o Quilombo Quariterê era liderado por José Piolho, segundo o documento Anal de Vila Bela do ano de 1770, após o falecimento do seu esposo (José Piolho), Tereza assumiu a liderança do Quilombo Quariterê e se destacou com a criação de uma espécie de parlamento, onde ela se reunia semanalmente para deliberar sobre a governança do quilombo. Sob sua liderança, a comunidade negra e indígena resistiu à escravidão por duas décadas – em 1770 ocorreu uma grande repressão, com mais de 100 quilombolas capturados, e mesmo sendo reconstruído, em 1777 foi novamente atacado pelo exército, sendo extinto em 1795. Tereza comandou a estrutura política, econômica e administrativa do quilombo, mantendo um sistema de defesa com armas trocadas ou resgatadas. Os objetos de ferro utilizados contra a comunidade negra que lá se refugiava eram transformados em instrumentos de trabalho, visto que dominavam o uso da forja. Segundo o livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis de Jarid Arraes, as comidas plantadas e cultivadas no quilombo eram divididas entre todos e também comercializadas, bem como tudo que sobrava era enviado para vendas e o plantio do algodão era utilizado no tecimento e na fabricação dos tecidos – tanto para os quilombolas negros e indígenas, quanto para a comercialização fora do Quilombo Quariterê.
Tereza de Benguela e Lélia Gonzalez revolucionaram a nossa história, elas deixaram marcas de sua resiliência e da sua capacidade de transformar, formar redes de afeto e resistência. E promover a revolução na moda, também consiste em trabalhar para transformar a indústria (e o mundo) em um lugar melhor, mas a falta de olhar e atenção para questões sobre raça revela como a moda ainda carece em reparar seu passado marcado pela escravização em campos de algodão e sua atualidade marcada pelo racismo e exclusão das potências negras. Apenas 7% das empresas analisadas no Índice de Transparência da Moda Brasil 2020 divulgam dados sobre como organizam as informações referentes ao perfil racial de seus funcionários, assim como ações relacionadas à regularização de trabalhadores migrantes estrangeiros em suas cadeias, 8% divulgam como as políticas para equiparação salarial entre homens e mulheres são colocadas em prática e 30% divulgam suas políticas para equiparação salarial entre homens e mulheres – mas vale ressaltar, que 0% das empresas publicam as diferenças salariais sob perspectiva racial. Enquanto isso, no ITMB 2019, apenas 1 empresa publica suas ações com foco na promoção da igualdade racial entre seus funcionários – nenhuma delas publica as diferenças salariais do seu quadro de funcionários sob perspectiva racial e somente 2 publicam a distribuição por raça dos trabalhadores nas instalações de fornecedores.
Criar novos caminhos podem sim ser desafiadores, mas na certeza dos ensinamentos e de mulheres negras como Lúcia Helena Corrêa, que reafirmo a importância de continuarmos lutando, existindo e resistindo enquanto mulheres indígenas, negras, latino-americanas e caribenhas. Se a moda não nos abre caminhos, nós abriremos e criaremos futuros possíveis – e os que não são, tornaremos – e para a historiadora Melina de Lima: “Comemorar o Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, é reforçar nossa Amefricanidade, somos a Améfrica Ladina, somos os povos originários americanos e os povos da diáspora africana. E nós, mulheres negras, precisamos ter orgulho e consciência da nossa potência, por exemplo, somos o maior grupo demográfico brasileiro, nós, mulheres negras, somos 28% da população. É urgente ocuparmos mais espaços. Então precisamos nos celebrar!.”
Viva Lélia Gonzalez, Tereza de Benguela e a todas as mulheres indígenas, negras, latino-americanas e caribenhas. Viva aos saberes e as tecnologias ancestrais, viva a uma moda revolucionária que contemple os nossos feitos e não mais nos coloque em posição de subalternidade!
Colagem: @latigracolagem.
Notas referenciais:
Para o desenvolvimento deste texto foram consultados o “Lélia Gonzalez Vive”, um projeto inédito, fruto da parceria entre a ONG Nossa Causa e a família da antropóloga, como Rubens Rufino e a historiadora Melina de Lima, respectivamente filho e neta de Lélia Gonzalez – o livro “Por um feminismo afro latino americano”, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima, que reúne em ordem cronológica, a maior parte dos ensaios, intervenções e diálogos realizados pela autora, também contribuiu para os escritos e saberes deste texto. Sobre a líder matriarca Tereza de Benguela, foram consultados diversos materiais, como a Exposição Enciclopédia Negra e o livro Histórias Negras Brasileiras: 15 cordéis de Jarid Arraes, uma escritora, cordelista e poeta brasileira. Os dados sobre gênero e raça podem ser consultados no Índice de Transparência Moda Brasil 2020 e 2019.
Sobre a autora:
*Taya Nicaccio – Trilhando por novos caminhos que contemplem a sua ancestralidade e uma moda mais justa, Taya é graduanda de Moda na Faculdade FMU/FIAM-FAAM e técnica em Modelagem de Vestuário, pela Etec Tiquatira. A jovem atua como modelo, produtora de conteúdo e no Instituto Fashion Revolution compõe o time de Comunicação, como Community Manager, e integra o Comitê Racial Fashion Revolution Brasil.