Três arquétipos para uma moda transparente
por Leonardo Marques e Adriana Muratore*
O contexto
O mercado da moda global vale 1,7 trilhão de dólares (Common Objective, 2019). No Brasil a indústria da moda movimenta 90 bilhões de dólares anuais (Apex, 2020). O país detém uma cadeia completa: cultivo de fibras, tecelagem, fabricação e varejo – sediando uma das cinco maiores semanas de moda do mundo (Tex Brasil, 2020). Danos à sociedade e ao meio ambiente há muito tempo foram ignorados, mas a pressão tem aumentado. Jovens consumidores estão engajados e podem deixar de comprar de marcas envolvidas em escândalos (Ponto Eletrônico, 2017). Uma análise recente na Bolsa de Valores brasileira mostrou que, em cinco anos, o número de relatórios produzidos aumentou, assim como a quantidade e a qualidade das informações divulgadas (Ching & Gerab, 2017). No entanto, a transparência é um equilíbrio entre riscos e oportunidades. A Clean Clothes Campaign (2020) resume argumentos de marcas para justificar falta de transparência: sigilo para vantagem competitiva e falta de informação de intermediários – que não querem divulgar seus fornecedores. Transparência da rede de suprimentos envolve custos e mudanças (Marshall et al., 2016; Marques et al,. 2019).
Partimos da definição de transparência da rede de suprimentos baseada em três aspectos: rastreabilidade – divulgação dos nomes dos fornecedores em cada etapa da produção; divulgar informações sobre as condições de sustentabilidade no fornecedor, e divulgar as políticas e práticas de compra da marca (Egels-Zandén et al., 2015). A transparência é, em última análise, uma solução para problemas devido à falta de informação (Fung, 2013). A noção de transparência democrática significa divulgar informações de forma que os cidadãos possam fazer melhores escolhas, com base em quatro pilares: disponibilidade, proporcionalidade, acessibilidade e acionabilidade. Este relatório emprega a teoria da sinalização como uma lente para responder à pergunta: Como as marcas de moda sinalizam a sustentabilidade por meio da transparência da rede de suprimentos?
A pesquisa
Esta pesquisa analisou marcas que participaram do Índice de Transparência da Moda Brasil (ITM) nos anos de 2018 e 2019 (Fashion Revolution, 2018, 2019). Estudamos as 20 marcas que aparecem nas edições de 2018 e 2019 do ITM brasileiro: Animale (Grupo Soma), Brooksfield, C&A, Cia. Marítima, Ellus, Fazenda (Grupo Soma), Havaianas (Alpargatas), Hering, John John, Le Lis Blanc, Malwee, Marisa, Melissa, Moleca, Olympikus, Osklen (Alpargatas), Pernambucanas, Renner, Riachuelo, Zara (Inditex). A coleta de dados foi focada nos sites das marcas, durante junho-julho de 2020 – as etapas da pesquisa estão resumidas na Tabela 1.
– Tabela 1: Procedimentos de Pesquisa –
Etapa | Procedimento de pesquisa |
1. Busca preliminar |
Busca pela palavra “sustentabilidade” na página inicial. Depois de uma primeira análise, refinamos para “Quais palavras são usadas para descrever sustentabilidade?” e “Onde as informações de sustentabilidade estão posicionadas no site?”. |
2. Busca sistemática |
Busca pela palavra “sustentabilidade”, “fornecedores”, “ética”, “investidores”, “institucional”, “valores” e “sobre a empresa”. Por fim, se nenhum dos anteriores foi encontrado, procuramos o site da Corporação. A sequência de marcas foi aleatória. A pesquisa tentou capturar todos os arquivos de cada marca em uma única visita, quando possível. Todos os links que pudessem estar relacionados às palavras mencionadas na etapa anterior foram impressos em PDF para posterior análise. Em sites que continham animações, vídeos ou outras mídias, capturas de tela eram feitas para salvar as imagens. Onde os arquivos para download estavam disponíveis (como relatórios), eles foram salvos. |
3.Organização dos dados |
Os arquivos foram catalogados em uma planilha Excel denominada “Controle de Arquivos”, com o nome das marcas, precedido de um número. A numeração garantiu o acompanhamento da sequência de ações da pesquisadora principal. Nessa planilha, também registramos o endereço da web e a data de recuperação. Qualquer observação inicial sobre um site que pudesse ser relevante nesse primeiro momento também foi registrada, como um link quebrado, por exemplo. |
4. Análise dos dados |
Todo o material baixado em pastas para cada marca foi importado para o software NVivo 12 de análise de dados. No entanto, houve ocasiões em que, durante a análise, percebemos que precisávamos visitar novamente o site. Nesses casos, adicionamos o novo material ao controle e Excel e ao software NVivo. |
As conclusões
Encontramos um nível de rastreabilidade incipiente. Muitas marcas divulgam listas de fornecedores. No entanto, muitos divulgam apenas fornecedores de nível 1. Mas a transparência deve ir além (Khurana e Ricchetti, 2016; Marques, 2019). Nos casos que marcas divulgam nível 2 ou mais, embora forneçam uma lista de fornecedores, não fica claro qual o percentual em relação a todos os fornecedores, o que limita a transparência.
Confirmamos a divulgação limitada das condições de sustentabilidade nos fornecedores: muitas marcas divulgam um Código de Conduta do Fornecedor e algumas informações sobre Auditorias. Códigos de conduta e auditorias são práticas básicas, mas embora o termo auditoria seja frequentemente citado, em muitos casos informações sobre frequência, requisitos ou resultados estavam ausentes. Isso não atende à proposta da Clean Clothes Campaing (2020), que enfatiza que a informação quantitativa (e reporte de métricas) é chave para promover transparência.
A falta de informações sobre as práticas de compra foi um dos principais achados deste trabalho. A própria Clean Clothes Campaing (2020) reflete que a versão anterior de 2016 não englobava políticas de compra e incluiu essa diretriz em 2020. No ITM 2018, as políticas de compra não foram abordadas explicitamente, mas em 2019 foi incluída uma seção com seis perguntas sobre políticas de compra. A falta de padrões costuma ser um dos obstáculos para a implementação da transparência, portanto, é importante que ONGs e outros atores avancem na definição do que significa transparência na política de compras para pressionar maior divulgação pelas marcas. Particularmente falando sobre 2020, é importante destacar que a epidemia do COVID-19 gerou queda nas vendas, e a questão do cancelamento de pedidos de grandes marcas ganhou importância crucial. Cancelamentos têm grande impacto nos fornecedores, uma vez que compram material e alocam pessoal para o pedido de compra (Forbes, 2020; The Guardian, 2020). Para que as empresas melhorem a transparência da rede de suprimentos nessa dimensão, o planejamento de pedidos, as políticas de cancelamento e de pagamento devem estar entre as informações divulgadas.
Em termos do conceito de proporcionalidade de Fung (2013), encontramos grande heterogeneidade nas práticas e níveis de transparência. Em termos de disponibilidade, foi surpreendente notar que seis das 20 marcas seguem sem nenhuma informação de sustentabilidade informada. Isso é o que rotulamos de ausência de sinais e mostra o longo caminho a ser percorrido no setor.
Em termos da observabilidade dos sinais, uma descoberta interessante é que diferentes marcas pertencentes a um mesmo grupo corporativo enviam sinais diferentes, provavelmente a partir de estratégias distintas de comunicação. Por exemplo, Havaianas e Osklen, ambas do grupo Alpargatas, enfatizam diferentes elementos de sustentabilidade. Havaianas tem foco na preservação do meio ambiente e na caridade, enquanto a Osklen destaca inovações sustentáveis em parceria com sua rede de fornecedores. Outro exemplo refere-se ao Grupo Soma: enquanto a Animale limita as informações à política e lista de fornecedores para o nível 1, a Farm avança no sentido de educar os consumidores sobre o processo de produção de roupas e as consequências de suas decisões.
No geral, é claro que há uma tensão entre a sinalização de resultados positivos e o conceito de transparência democrática que enfatiza como a divulgação de informações afeta os interesses dos cidadãos – o que inclui a transparência de resultados negativos. Categorizamos as práticas das marcas em três arquétipos usando a classificação de Lamming (2001): baixa transparência como opaca, média transparência como translúcida e alta transparência como transparente. Na Tabela 2, oferecemos os três arquétipos finais da Transparência da Moda que ajudam no entendimento do estágio atual no setor.
– Tabela 2: Arquétipos para a Moda Transparente –
Arquétipo | Marca Opaca | Marca Translúcida | Marca Transparente |
Comunicação Onde a sustentabilidade está posicionada no website? |
Sem informação ou Três+ cliques para achar |
Dois cliques para achar | Um clique para achar |
Rastreabilidade Qual a abrangência da informação divulgada? |
Sem informação ou apenas fornecedores Nível 1 |
Informação sobre fornecedores Nível 1 e 2 |
Informação além do Nível 2 ou prova de 100% divulgação |
Sustentabilidade da Rede Existe informação sobre auditorias e seus resultados? |
Processo de Auditoria: Sem informações ou Código de Conduta vago (Sem frequência, nem critérios) Resultados da auditoria: |
Processo de Auditoria: Informações genéricas, critérios ou checklists Resultados da auditoria: |
Processo de Auditoria: Auditoria terceirizada e/ou Programas de Desenvolvimento de Fornecedores Resultados da auditoria: |
Políticas e Práticas de Compras Existe informação sobre políticas e práticas da própria marca? |
Práticas Informações genéricas para registro de fornecedor Estratégia |
Práticas Informações detalhadas para registro de fornecedor (checklists, formulários) Estratégia |
Práticas Informações detalhadas para registro de fornecedor, política de pagamentos, política de cancelamento, e métricas para avaliação do fornecedor Estratégia |
Esperamos que nosso trabalho apoie profissionais de sustentabilidade e marketing do setor de moda sobre o que e como divulgar. Ao oferecer três arquétipos – opaco, translúcido e transparente – profissionais podem comprar as práticas de sua própria marca com as três categorias e refletir sobre onde elas se encaixariam atualmente, bem como planejar as etapas futuras. Para as ONGs, este estudo serve como um guia de quais práticas devem estar em seu radar e quais carecem de métricas mais claras, uma vez que marcas costumam usar a falta de padrão como justificativa para a falta de transparência (Marshall et al., 2016). Os esforços coletivos para estabelecer e fazer avançar os padrões são essenciais para produzir um futuro onde a moda seja verdadeiramente transparente.
Autores
Leonardo Marques
Professor do COPPEAD-UFRJ e Coordenador da Rede Transparência & Sustentabilidade em Negócios, apoiado por Coca-Cola e pela FAPERJ. PhD pela University of Manchester (2016), Mestre pelo COPPEAD (2004) e Bacharel pela POLI-UFRJ (2000). 20 anos de experiência profissional, tendo trabalhado com L’Oréal, O Boticário, Hershey’s, Richards, Leader Magazine, Lojas Renner, Grupo Dufry, Halliburton, Technip, Tenaris, Siemens, Schott e TV Globo. Professor visitante da Audencia Business School (2018-2020) e da Politécnica de Milão (2021). Membro do Comitê Executivo do IPSERA International Purchasing and Supply Education and Research Association. Sua pesquisa foca em transparência e sustentabilidade em redes de suprimentos.
Adriana Muratore
Mestre pelo COPPEAD, UFRJ (2021). Formada em Administração pela UERJ (2008) com MBA em Gestão Estratégica de Pessoas pela FGV (2016). 10 anos de experiência profissional, atuando principalmente na área de Recursos Humanos. Sua pesquisa foi sobre transparência e sustentabilidade em empresas de moda no Brasil.
Referências
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Ching, H. Y., & Gerab, F. (2017). Sustainability reports in Brazil through the lens of signalling, legitimacy and stakeholder theories. Social Responsibility Journal, 13(1), 95–110. https://doi.org/10.1108/SRJ-10-2015-0147
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