Rainha de Bateria
*por Glícia CaúperNo começo desse ano (em fevereiro de 2022, pra ser mais precisa), eu fiz o meu primeiro portfólio artístico. Estudei bastante pra fazê-lo. Quer dizer, não sei nem se posso chamar o que fiz de estudo, só posso garantir uma coisa: houve muito empenho. Maratonei praticamente o instagram inteiro da Anelise Valls (@anevalls)! A Anelise é doutoranda em Artes Visuais pela UFRGS, Mestra pela USP e faz acompanhamento pra artistas visuais e, em seu instagram, dá várias dicas de arte e sobre construção de portfólio.
Numa das dicas que eu li, a Anelise falava sobre não entregar todo o sentido que você quer atribuir às suas obras quando for explicá-las, seja num portfólio, numa entrevista para alguma mídia ou mesmo naqueles textos expostos nas galerias. Segundo ela, é necessário dar ao espectador a possibilidade de que ele atribua por si só novos significados à sua obra, permitindo que um novo sentido seja co-criado.
Eu realmente adorei a explicação e adorei imaginar todo o potencial de criação de novos sentidos a partir de uma só peça ou artigo. E é exatamente por isto que, neste texto, vou entregar lhes apenas os dois principais sentidos que pensei ao confeccionar a fantasia de Rainha de Bateria.
Acho que o primeiro sentido é um tanto quanto óbvio: vou tratar sobre a quantidade de resíduos que estamos acumulando no planeta: não à toa confeccionei a fantasia com baterias antigas de celulares, relógios e dispositivos afins.
Talvez o que não seja tão óbvio, é o que posso falar acerca desse acúmulo de resíduos. O tradicional entre as mídias de moda mais relevantes do país é levantar uma bandeira e instigar as
pessoas a “vestir uma causa”, e usar frases de impacto como “Seja a Revolução, consuma consciente!”, o que não vai ser o caso aqui. Acho esse tipo de discurso perigoso demais: ele pode acabar imputando culpas a quem não é efetivamente culpado pela grande quantidade de resíduos que é gerada atualmente e pode até servir pra perpetuar discursos moralistas, algo meio “nossa, você compra na Shein???”, sem levar em conta questões histórico-sociais necessárias ao debate. Além disso, existe uma série de questões que também flutuam nesse campo “perigoso”. A produção de roupas para pessoas gordas, por exemplo, é um outro motivo que justifica o consumo em lojas fast fashion ou ultra fast fashion. De maneira geral, a produção de peças para essa parcela de consumidores é escassa. Constantemente eles reclamam de só encontrar como opção peças feias e caras nas lojas mais tradicionais, o que as leva a consumir nas “Shein da vida”.
Por isso, não quero focar em convidar ninguém a engajar na causa do consumo consciente agora. Por outro lado, quero convocar o maior número de pessoas possíveis a pensar comigo: o que é moda? Lembro que em uma das aulas do curso do Instituto Casa de Criadores, alguém falou sobre a etimologia da palavra moda e explicou que a palavra significa “conjunto de modos” e portanto, a palavra moda não se refere apenas a acessórios ou vestuários, mas também a comportamentos e modos de agir que, de alguma forma, se tornam populares em alguma parcela da sociedade. Neste sentido, vamos ser francos: está na moda ter smartphone, está na moda ter TV de LED, está na moda ter Alexa. Enfim, está na moda ter um monte de dispositivos eletrônicos.
Por que quando se fala em consumo consciente, costuma-se focar apenas na moda que envolve acessórios e vestuário? Existe alguma razão pra que não se foque nas outras modas que estão coexistindo com essa? Seria o fato de ainda lerem a moda vestuário como algo fútil e que pode ser “evitado”? Ou seria por uma facilidade em encontrar soluções rasas, mas que despertam o sentimento de estar engajado numa causa? Novamente o “Eu não compro na Shein!”, o “Eu só uso roupa de brechó”, o “Meu guarda-roupas agora é bem minimalista” e a falsa sensação de “estar fazendo sua parte”. São diversas perguntas e eu não tenho resposta pra nenhuma delas haha. Apenas as trouxe, porque é importante que se reflita sobre isso.
Sabe o que mais está na moda e também é importante refletir? O SAMBA!
Chegamos então ao momento onde eu vos apresento o segundo sentido que pensei ao confeccionar a fantasia da Rainha de bateria: o embranquecimento do samba.
Primeiramente, eu preciso dizer: sim, sou nas fotos, sou eu usando a fantasia. E, embora eu não me considere branca, sei que por ter a pele clara, para muitos eu posso ser lida assim. Então é completamente natural que alguém puxe, agora, da manga, um card com o meme “mas Serena, você também é branca!” (Se você não conhece esse meme, dê um google para entender, ferinha!).
Embora eu tenha a pele clara acho que eu tenho local de fala kkk. É sério! Essa parte do texto vai pra quem é preconceituoso e diz que pessoas de pele clara não podem falar sobre o embranquecimento do samba! (Essa referência aqui também é clássica, se você não conhece: por favor, vá no google!).
Brincadeiras à parte, preciso trazer mais alguns fatos pra roda: eu fui nascida e criada no Carnaval. Nasci no dia 26 de fevereiro de 1993, e em fevereiro, vocês sabem: TEM CARNAVAL! Quase todos os meus aniversários tiveram como tema o próprio Carnaval. E até nos que não tiveram esse tema, eu me fantasiei, ouvi marchinhas, samba e axé.
Também é importante mencionar que no mesmo ano em que nasci, minhas tias passaram a ser membros da Harmonia do Grêmio Recreativo Escola de Samba Vitória Régia, e continuam sendo até hoje. Por isso, desde muito nenenzinha eu frequentava a escola, assistia aos ensaios da bateria, da comissão de frente, me encantava com as fantasias, os casais de mestre-sala e porta
bandeira e tudo que existia naquele universo. Eu desde sempre vi de pertinho toda a alegria e todo o empenho da comunidade pra fazer aquela grande festa acontecer.
A Vitória Régia fica localizada na Praça 14 de Janeiro. A Praça 14, por sua vez, não é um bairro periférico (na verdade é um bairro bem próximo do Centro da cidade), no entanto, não entra no rol dos bairros nobres da Paris dos Trópicos. Há bairros mais “mal quistos” na cidade, mas a Praça não é um queridinho, se é que você me entende. O bairro, conhecido como o berço do samba em Manaus, conta com uma grande população negra, sendo inclusive, onde está localizado o Segundo Quilombo Urbano do Brasil, Patrimônio Cultural Imaterial do Amazonas: o Quilombo de São Benedito.
Como eu mencionei anteriormente: cresci nesse universo, mas, mesmo sem ninguém ter me explicado, eu sabia que ele não era meu. Eu achava (e acho até hoje) tudo lindo, mas sempre soube que me faltava algo pra ser como os moradores de lá: me faltava uma ginga, um molejo, um borogodó ou sei lá o que. Eu frequentava (e frequento até hoje) a Praça 14, mas eu não moro lá.
Não sei das dores e nem dos perrengues de quem vive ali: tudo que eu sei é superficial, mesmo estando lá com muita frequência.
Eu lembro que antes haviam grandes festas na rua, nos arredores da quadra da escola de samba. E que essas festas eram espaços dos “cabocões” e “galerosos”, como se chamam os “pivetes”, os “mandrakes”, os “maloca” daqui. Lembro que até tinham um ou dois exemplares das classes A e B nesses eventos, mas era bem isso: a gente contava nos dedos quem era rico e estava ali (e não era traficante rs).
De uns tempos pra cá, a coisa mudou. As festas de rua foram diminuindo e os artistas que tocavam samba começaram a migrar de espaço. Às vezes iam tocar em outros bairros, às vezes na própria praça 14. Independentemente do local pra onde eles iam, uma coisa me parecia bem clara: a organização desses eventos já não era mais só da comunidade. Passou a existir um terceiro interventor, com toda certeza, e os eventos passaram a ser mais “higienizados”. E isso significa necessariamente algo ruim? Ora se não é mais uma pergunta para a qual não tenho resposta rsrsrs.
Só sei que eu já vinha reparando nesse movimento na minha cidade desde 2018, mais ou menos, e nesse ano, me atentei pro fato de que ele pode ser um movimento nacional (guardadas as suas devidas diferenças e proporções). Afinal, a questão da compra dos cargos de rainha da bateria nas escolas de samba do Rio e de São Paulo (o Brasil não-regional), evidenciou bastante a questão da “inclusão” desse “terceiro interventor”. Uma inclusão que de alguma forma concede mais espaço ao terceiro do que aos próprios integrantes das comunidades, que vivem o Carnaval o ano inteiro.
Se a gente parar pra pensar mais um pouquinho, é fácil lembrar que houve um tempo em que o samba era proibido no Brasil, que era associado ao “crime de vadiagem” e que os primeiros blocos de Carnaval foram reprimidos no país. A aceitação do ritmo e do próprio Carnaval só vieram com a cooptação deles. Apareceram os Tom Jobins e o poder público passou a injetar dinheiro nas escolas de samba, para que elas desfilassem em locais fechados, com horário determinado. Enfim, foi colocada ordem na desordem.
E se a gente pensa um pouquinho mais, também é fácil demais lembrar de um trechinho de Samba da Benção, de Vinícius de Moraes:
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
E aqui, eu, uma mulher de cor clara, cheia de passabilidade, mas que por algum motivo (fique à vontade para imaginar qual) aprendeu a se explicar muito, te instigo a pensar no motivo de eu citar Vinícius de Morais: seria só pela canção ser bem conhecida ou teria algo a mais? Fica aqui mais um questionamento haha. Fique à vontade para atribuir mais sentidos a minha obra.
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Glícia Cáuper
Advogada, pós-graduanda em Processo Civil, produtora e gestora de conteúdo digital, artista multidisciplinar, aluna do curso Qual moda para qual mundo, do Instituto Casa de Criadores e estudante embaixadora do Fashion Revolution Brasil. Siga @gliciacauper.