Quem tem medo de Madame Satã?
pelo nosso colunista, Rafael Silvério*
Não posso começar esse texto sem lembrar do livro do filósofo espanhol Beatriz Preciado, batizado de Manifesto Contrassexual de 2015, indicado a mim por Maurício Ianês. Demorei uns anos para conseguir realmente entender as indagações dos estereótipos que ele propõe quando o assunto é gênero.
Trazendo reflexões pertinentes à contemporaneidade referentes a desejo transpassando outros filósofos que exploraram o tema. Ainda realmente estamos falando sobre como esses corpos têm que expressar suas vontades em pleno século XXI? As barreiras de gênero sempre foram exploradas pela moda de maneira superficial, ainda impulsionadas por vontades capitalistas com roupagem de transgressão, mas esse discurso é meramente embalagem.
O que me parece ser mais novo ao Front, é a inegável maior compressão da Geração Z sobre essa questão, é muito mais do que nós (pseudos jovens balzaquianos) essa geração vive a expressão para além da sexualidade passando pela maneira que se vestem, porém essa realidade no qual meninos vestem roupas destinadas pelos designers como femininos é um “privilégio” que perpassa por classe e raça.
Muito antes de termos participantes de reality shows brasileiros usando vestidos, Kurt Cobain já usava mini vestidos sobre as calças jeans rasgadas, vale lembrar que em ambos os casos citados os homens se entendem como héteros e são brancos com visibilidade.
Quando temos essas expressões em lugares sociais mais inóspitos, e os tons de pele dos manifestantes desses desejos são mais retintos, este simples ato se torna danoso para a própria vida. Muitos se entendem quem são pelo simples fato de conseguir usar uma peça de roupa dita ser pertencente ao gênero oposto (quão pretensioso isso é agora que coloco em palavras) que conseguem expressar e desenjaular desejos originais que deveriam ser garantidos, o da auto expressão de ser, como pode área de tecido que cobre e expõe o corpo, revelar tanta individualidade. A identidade também é construída a partir do ato de vestir, e aqui a moda mostra sua capacidade de ilustrar as manifestações mais naturais do desejo.
Há aqueles que conseguem romper com a binaridade na evolução para construção de um novo caminho, não mais o agênero, mas o gênero neutro. Um espaço seguro longe das obrigações de ser uma coisa ou a outra, espaço neutro que não oprime o masculino nem o feminino, tornando uma ferramenta para solidificar a manifestação de ser o que quiser, quando quiser, dentro dessa fenda.
Os discursos genuínos que desafiam a ideia de homem e mulher, se fazem necessários política de resistência, já que estamos a tempo revendo o que é ser homem e mulher, que nunca deveria ter contado apenas como a biologia para isso. Essa opressão de gênero é uma crença que fica de herança, de geração para geração, deixando um rastro de vítimas adoecidas por vivência em padrões que modelam corpos e comportamentos sempre pronto a servir e nunca discutir, como se fôssemos conduzidos por um profeta, a viver em um deserto na esperança que este um dia retorne com 10 mandamentos que norteiam todo uma sociedade em prol do nome de um superior. Quantas vidas perdemos nessas violências silenciosas, e infecciosas o suficientes para criação de bolhas venenosas que quando explodem, matam por dentro, e para a tolerância desta realidade nos faz cada vez mais dependentes de antidepressivos e ansiolíticos.
A volatilidade da indústria tende a esvaziar essas narrativas e entregar produtos ocos de real significado, então equivale aqui o meu cuidado em tratar o tema com a delicadeza com que eu gostaria de ser tratado.
Mesmo que a visibilidade sobre as questões ligadas a gênero tenham ganhado holofotes, estamos longe de derrubar as ideias fundadas em crenças passadas do que é o masculino e feminino.
Hoje eu espero que os de corações selvagens ainda resistam, e usem a moda como ferramenta de se expandirem como seres humanos, sejam coloridos ou monocromáticos, leves ou densos, minimalistas ou melodramáticos, mas que essa ferramenta que por muito tempo ajudou a solidificar e perpetuar conceitos agressivos, se tornem realmente mais fluidos para além de um bom negócio para um posicionamento de marca.
*Foto: crédito – Frame do filme “Madame Satã”, de 2002. Protagonizado pelo ator Lázaro Ramos e dirigido por Karim Aïnouz.
Sobre o autor:
Rafael Silvério – Designer preto de moda e consultor de branding. Formado pela Faculdade Santa Marcelina em Desenho de Moda (2013). Pós graduação na UNIP em Negócios Internacionais e Comércio Exterior (2016). Designer participante da Casa de Criadores (2019) com sua marca @silveriobrand. Propõe pela moda uma maneira de reconhecer seus sentimentos, questionando a noção de belo. Através de volumes inventivos e silhuetas lúdicas por um olhar romântico. Trabalha como consultor de branding para marcas e negócios relacionados à criatividade. Leia outros textos de Rafael Silvério no Blog Fashion Revolution.