Quando a inovação encontra materiais ancestrais: qual a responsabilidade do designer ao trabalhar com heranças culturais?

By Fashion Revolution

2 years ago

Original de What Design Can Do traduzido por Eduarda Bastian
Foto: Fios de urtiga sendo tecidos por uma artesã Laklãnõ Xokleng. Foto de Vladmir Kozák via NEPI, 1966.

 

À medida em que o planeta continua a sofrer as consequências das ações humanas como a exploração de recursos, o desmatamento, e a queima de combustíveis fósseis, jovens designers e inovadores vêm demonstrando interesse em materiais mais ‘ecofriendly’, na tentativa de reduzir o uso de recursos não renováveis. No entanto, vários materiais apresentados como “inovações” têm sido usados ​​há séculos por comunidades tradicionais ao redor do mundo, como uma parte importante de sua cultura e patrimônio. Deixar de reconhecer essas comunidades e seu conhecimento ancestral do material – agora apresentado como ‘inovador’ – vai contra todo o conceito de sustentabilidade, um conceito que engloba fortemente valores sociais e culturais.

A prática de usar recursos naturais para têxteis e design é tão antiga quanto a história do ser humano. O cânhamo e o linho, por exemplo, moldaram culturas inteiras econômica e socialmente por milhares de anos. As fibras de urtiga, que já foram várias vezes expostas em feiras e exposições de inovação nos últimos anos, desempenham um papel importante nas comunidades indígenas Xokleng do Brasil. Essas fibras foram – e ainda são – extraídas, fiadas e tecidas manualmente pelas mulheres dessas comunidades. A maioria das comunidades tradicionais cultiva uma relação simbiótica e harmoniosa com todas as plantas (e outros seres), que não são vistas apenas como um mero recurso (e o mesmo vale para a fibra extraída delas). O que poderia significar para essas comunidades ver um material que vêm sendo usado por elas há séculos, como uma parte sagrada de sua cultura, sendo creditado a outra pessoa como uma inovação de design?

No mesmo contexto, um pequeno vilarejo da Transilvânia preserva há séculos a arte de fazer “couro amadou” (amadou leather), de um material extraído de cogumelos poliporo (que, por sinal, não é o mesmo que o ‘’couro’’ de micélio). Como esperado, mais de uma empresa ganhou prêmios de inovação por trabalhar com o material. Algumas delas realmente trabalharam com as famílias da aldeia em questão (Korond), e isso às vezes é ressaltado em seus sites oficiais. No entanto, apenas mencionar a aldeia como fornecedora do material não é suficiente para reconhecer verdadeiramente esta tradição e respeitar o seu património cultural. Para serem vistos e protegidos, eles devem ter sua história contada com suas próprias palavras. E muitas vezes as empresas falham em falar sobre o uso ancestral do material e os detentores da prática.

Atualmente, embora existam projetos com o objetivo de proteger comunidades da apropriação cultural na moda e no design, eles se concentram principalmente em estampas e bordados tradicionais. O mesmo princípio não deveria ser aplicado aos materiais, se eles também carregam significado relevante e conotações históricas? Outra questão que vale a pena mencionar é o impacto ambiental da industrialização dessas práticas (que normalmente é o objetivo da maioria dos inovadores). As comunidades que trabalham com os materiais citados seguem ritmos lentos, respeitando os ciclos naturais e utilizando zero insumos nocivos. É compreensível que as pessoas queiram valorizar materiais sustentáveis ​​como esses para combater o uso de recursos não renováveis. No entanto, quando industrializamos práticas como as em questão, podemos causar impactos ambientais perigosos, especialmente considerando o uso de energia. O cultivo em larga escala de algumas fibras vegetais também pode implicar em maior uso da terra, podendo até levar ao desmatamento.

Além disso, ao escalar o artesanato tradicional a um nível industrial, muitas vezes uma conexão importante é perdida no processo: aquela entre o ser humano e a Natureza. As comunidades que trabalham com materiais de origem vegetal cultivam uma relação única com a planta que fornece a fibra a ser utilizada. Em várias ocasiões (se não em todas), o material também carrega um importante valor espiritual e social, como fibras de cânhamo na cultura romena ou fibras de lótus para várias comunidades da Ásia.


Criando práticas mais simbióticas

Claro, existem maneiras de trabalhar eticamente junto a essas comunidades, em vez de levar todo o crédito por algo em que estão trabalhando há séculos. Industrializar e aumentar a escala não é a única solução – é possível criar formas criativas de trabalhar em menor escala, valorizando e capacitando comunidades de artesãos em todo o mundo. Encontrar evidências de comunidades tradicionais existentes que já trabalham com a fibra em questão deve moldar o desenvolvimento do trabalho, especialmente se for algo que esteja inserido na cultura local. Antes de criar uma relação mais profunda com a comunidade em questão, o pesquisador ou designer deve considerar a abertura e a vontade dos artesãos de trabalhar juntos. A comunidade não têm obrigação nenhuma de colaborar, e seria desrespeitoso forçar algo que não esteja alinhado com seus hábitos e crenças.

Além disso, é importante concordar claramente sobre como a colaboração funcionará, e como os participantes serão compensados ​​de forma justa. A retribuição à comunidade deve ser determinada desde o início, pois ela está compartilhando abertamente conhecimentos preciosos – e, ao tomar essa decisão, deve haver uma conversa transparente e aberta, a fim de entender as necessidades de todos. Dar crédito é indispensável, como acontece com qualquer patrimônio cultural. Compartilhar suas histórias, mostrar seus rostos e seus nomes (quando permitido) – isso anda de mãos dadas com a transparência, que é um princípio fundamental dentro da sustentabilidade. Andreaa Tanasescu, fundadora da Asociația La Blouse Roumaine IA e criadora do movimento cultural Give Credit, diz que cada comunidade é diferente – não adianta tentar seguir a mesma metodologia de trabalho em todas, pois cada uma tem costumes únicos.

Uma conexão mais forte com os materiais é essencial para uma relação mais incorporada com nossas roupas e outros objetos, e isso só pode ser ensinado por quem vive isso profunda e verdadeiramente. Reconhecer e demonstrar gratidão pela expertise de comunidades artesãs tradicionais nos aproxima da construção de uma prática mais simbiótica e na criação de algo verdadeiramente sustentável, mantendo as tradições e protegendo conhecimentos preciosos.

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Eduarda Bastian – Pesquisadora e educadora na área da moda com foco em materiais, fibras e sustentabilidade. Trabalha como professora no SENAI de Santa Catarina e como presidente do comitê têxtil na Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC). Oferece workshops, palestras e consultorias com o objetivo de comunicar ferramentas e conhecimentos para a necessária e urgente mudança sistêmica da indústria têxtil.

Instagram: @eduardabastian