Qual a importância do relatório do IPCC para a Indústria da Moda?
Há muito tempo a indústria da moda não é regulamentada, não é transparente, não assume suas responsabilidades e opera em detrimento do meio ambiente. Neste post de blog escrito por Anvita Srivastava, veja o que virá para a moda e as ações climáticas.
Este artigo é uma tradução do original “What does the IPCC report mean for the fashion industry?“, feito por Marcela Luppi.
Em meio a notícias constantes de ondas de calor recordes, incêndios florestais devastadores e enchentes generalizadas e imprevisíveis, a evidência das mudanças climáticas poucas vezes foi tão clara e irrefutável. No último relatório publicado pelo Intergovernmental Panel on Climate Change (Painel Intergovernamental sobre mudanças climáticas), ou IPCC, das Nações Unidas, os cientistas alertam que a raça humana tem hesitado demais e feito de menos.
Desde a Revolução Industrial, a atividade humana tem alterado o clima de forma tão sem precedentes que agora enfrentamos a possibilidade de exceder o limite do 1,5ºC até meados de 2030. O relatório convoca os líderes, governos e empresas a tomar ações mais rigorosas de forma rápida e agir agora. Enquanto nossas redes sociais são inundadas com pedidos para reverter as emergências de alerta vermelho das mudanças climáticas feito por essas mesmas partes interessadas, o que as descobertas significam de forma prática para os maiores emissores?
De acordo com o Banco Mundial, a indústria da moda é responsável por 10% das emissões globais de carbono, o que representa mais do que as emissões por fretes marítimos e voos internacionais combinadas. Estima-se que, no ritmo atual, a indústria da moda perderia a corrida de 1,5 grau em 50% até o final desta década. E com uma previsão de aumento da demanda por roupas e calçados em 63% na próxima década, a estatística não parece muito otimista.
Apesar da Global Fashion Agenda destacar que a tomada de ações em relação às mudanças climáticas é um dos principais compromissos do CEO para a década, o esforço realizado simplesmente não basta. Especialistas dizem que as ações da Indústria da Moda não são urgentes e focadas. Como presidente designado da Conferência de Mudanças Climáticas das Nações Unidas, Alok Sharma diz o seguinte sobre o setor da moda: “Precisamos de uma mudança completa. A sustentabilidade não pode ser restrita a determinadas marcas ou coleções pequenas. Concordar com a tomada de ações definitivamente não basta. Precisamos que todo o setor abrace as metas do Acordo de Paris”
Um caso que precisa de ações urgentes e rigorosas
A Indústria da Moda é o terceiro maior setor manufatureiro e emissor global com operações distribuídas no mundo todo. Mas, de onde essas emissões vêm, de verdade? Para descobrir a resposta, precisamos analisar a cadeia de valor e fazer o trabalho inverso, começando pelos nossos guarda-roupas, passando pelo varejo, transporte e envio, produção e processamento, chegando até o começo de tudo: o material bruto. Mais de 70% das emissões são derivadas de atividades da cadeia acima, como a etapa de produção de tecidos, devido à nossa dependência excessiva de tecidos sintéticos derivados de combustíveis fósseis, além de instalações e fábricas que gastam muita energia.
“Melhorias na eficiência energética e a transição de combustíveis fósseis para fontes de energia renováveis poderiam chegar a uma redução de cerca de 1 bilhão de toneladas métricas de emissões até 2032 em toda a cadeia de valores da moda” -McKinsey & Co. e Global Fashion Agenda, Fashion on Climate
Porém, a troca para materiais sustentáveis não é suficiente se não houver mudança no status quo do restante das operações. O Fashion Industry Charter for Climate Action, lançado em dezembro de 2018, sob as circunstâncias das Mudanças Climáticas da ONU, declarou a proposta de alcançar a emissão zero no setor até 2050. Somente nos últimos dois anos, muitas grandes marcas responderam à pressão das partes interessadas sobre compromissos de emissão zero e grandes metas de redução. No entanto, não ficou claro como elas farão isso. As medições atuais são muito poucas e ajustes pequenos podem reduzir o impacto de vestuários individuais, mas estão longe de serem suficientes para transformar o modelo de negócios. O foco não pode se limitar aos materiais e precisa considerar todo o ciclo de vida dos itens de vestuário. No entanto, infelizmente, isso não é muito simples.
A natureza complexa e o envolvimento de diversas partes interessadas resultam em operações e emissões sobre as quais as marcas têm pouco controle e influência. Na realidade, a indústria é tão fragmentada que nenhum participante individual é responsável por mais de 1% do mercado. Entretanto, o relatório do IPCC deixa claro que as marcas precisam agir e assumir o controle de toda a cadeia de valores se quiserem fazer alguma diferença significativa.
Então, o que as marcas podem fazer? Primeiro, elas precisam se afastar das decisões influenciadas pelo marketing e adotar uma abordagem baseada na ciência para identificar a linha de base, definir as metas de 1,5ºC, medir e monitorar com frequência as suas emissões. Segundo, elas devem criar sinergias entre diferentes partes interessadas na cadeia de suprimentos, seja para incentivar os parceiros da cadeia de suprimentos a usar renováveis ou investir na criação de recursos e criar um impacto de longo prazo. As marcas e varejistas de moda também devem medir, remediar e comunicar seus impactos ambientais para reduzir de forma tangível seu impacto climático. Por último e mais importante, a indústria precisa trabalhar em conjunto e mudar de uma cultura de fast fashion para slow fashion, do modelo de negócios linear para o circular e de esforços individuais para coletivos.
O relatório do IPCC deixa totalmente claro que são necessárias ações urgentes e agressivas para a sobrevivência da indústria da moda. Existem muitas oportunidades para a descarbonização acelerada no ciclo de vida de um vestuário. Eles incluem a descarbonização da produção de materiais por meio da agricultura regenerativa, a redução do desperdício, a descarbonização da fabricação de vestuário nas operações cadeia acima e o uso de materiais sustentáveis, embalagens aprimoradas, sistemas de varejo descarbonizados, ecossistemas regenerativos ao fim da vida útil e redução do excesso de produção nas próprias operações das marcas.
A ação coletiva e os compromissos inequívocos são essenciais para alcançar a emissão zero da cadeia de valores até 2050.
Responsabilidade pela mão de obra
Como geralmente acontece ao discutir as mudanças climáticas, temos tendência a focar nos números e negligenciar a consideração mais importante: as pessoas. A indústria da moda precisa considerar o impacto das mudanças climáticas nas pessoas mais vulneráveis do mundo, uma vez que elas são a base da mão de obra da cadeia de suprimentos.
O setor de vestuário é historicamente conhecido por não se responsabilizar pelos trabalhadores da cadeia de suprimentos. Muitas grandes marcas ocidentais têm sido ocupadas com fusões, aquisições e desinvestimentos à medida que se recuperam do choque econômico de 2020. Embora a indústria esteja se recuperando mais rápido do que o esperado, os trabalhadores — muitos deles até agora estão desempregados e desprotegidos — foram deixados à própria sorte. As marcas apenas têm tentado passar a responsabilidade para a próxima parte, enquanto os mais vulneráveis literalmente lutam pela sobrevivência.
“Cerca de 21% do potencial de redução acelerada está diretamente relacionado às ações do consumidor na fase de uso e de fim de uso das peças, ocasionado pelo consumo consciente e pelos novos modelos de negócios industriais” –McKinsey & Co. e Global Fashion Agenda, Fashion on Climate
Uma tendência semelhante pode ser observada nas discussões sobre mudanças climáticas. Nenhuma marca quer assumir a responsabilidade de garantir a segurança e o bem-estar das pessoas responsáveis pela existência de seus produtos. Junto com a produção, as grandes marcas dominaram a arte de jogar para os outros todos os impactos das mudanças climáticas e impactos sociais negativos sobre os milhões de trabalhadores. Isso é inaceitável e exige o estabelecimento de um vínculo claro entre a agenda climática, os direitos dos trabalhadores e as práticas de trabalho.
Seja de um 1,5ºC ou 2ºC, esses compromissos não significam nada se não conseguem proteger a vida humana. Como uma indústria de US$ 2,5 trilhões, que emprega quase 430 milhões de trabalhadores, a moda não tem apenas os recursos, mas também a obrigação moral de garantir a segurança de toda e qualquer pessoa que participa da sua cadeia de valor.
Influenciando o comportamento sustentável do consumidor
A Indústria da Moda, incluindo tanto as marcas quanto as varejistas de e-commerce, têm influência o suficiente para não apenas mudar as próprias operações, mas também apoiar os esforços de descarbonização da indústria e ajudar os consumidores a fazer escolhas de compra mais sustentáveis.
Os principais impulsionadores seriam a redução da produção e do consumo excessivos e um investimento na escalabilidade dos modelos de negócios circulares. Se as empresas fornecerem aos consumidores opções e facilidades para alugar, revender, consertar e customizar suas roupas, isso moveria a indústria para mais perto do sistema de circuito fechado e poderia evitar a emissão de cerca de 143 milhões de toneladas de gases causadores do efeito estufa até 2030. De acordo com o relatório Fashion on Climate da McKinsey, atualmente menos de 1% dos produtos usados são reciclados dentro da cadeia de valores de vestuário e um aumento na reciclagem tem o potencial de reduzir cerca de 18 milhões de toneladas de emissões anualmente.
Empresas de moda circular como revendas, aluguéis e trocas, fornecem aos consumidores opções de compra mais sustentáveis e levam a conversa para a direção certa. Criar um ecossistema que acolha essa nova forma de pensar e adotar princípios de moda circular é um instrumento vital e indispensável do arsenal de ferramentas da Indústria da Moda no combate às mudanças climáticas.
Pensando no futuro da moda
O relatório do IPCC é um enorme alerta vermelho de que, após passar os últimos 30-40 anos ignorando o aviso dos cientistas, nós estamos quase sem tempo para tomar ações sobre as mudanças climáticas. A Indústria da Moda perdeu o privilégio de ter reações lentas e agora precisa buscar estratégias proativas para se afastar da trajetória atual, que desvia da jornada do 1,5ºC. No entanto, mudar a trajetória requer uma colaboração cruzada em massa da cadeia de valores, envolvendo diálogos ativos entre as marcas, governos, autoridades regulatórias e agentes não vinculados ao estado.
Foram realizados progressos na área por meio de diversos fóruns, como o Sustainable Apparel Coalition, o Textile Exchange e o Fashion Pact, que reúnem os principais participantes para apoiar os esforços de diminuição das emissões de carbono. O financiamento de capital de risco para inovação circular e tecnologias de descarbonização na Ásia pela Good Fashion Funds, o compromisso político do grupo de trabalho de políticas do Gráfico da Moda na região do Sudeste Asiático, e talvez o mais importante, o desenvolvimento do documento de marcos pela equipe do setor de moda dos Campeões de Alto Nível do Clima do COP 26. O documento apresenta as metas e iniciativas de descarbonização da indústria e fornece um mecanismo para promover e ampliar as iniciativas existentes até o COP26 e além.
E quando tudo estiver feito, o sucesso dos esforços da indústria da moda não será medido pela grandiosidade dos compromissos ou pelo mero reconhecimento da crise, mas por quão rápido esses líderes utilizam seus recursos massivos para compensar anos de danos e recalibrar a trajetória da indústria. Precisamos de uma legislação urgente para forçar as marcas a agir. A ciência não deixa brecha para ambiguidade: a mudança é necessária.
Imagem: “No Man’s Land” de Christain Boltanski, composta integralmente de 30 toneladas de roupas descartadas, em exibição na Park Avenue Armory na cidade de Nova Iorque, maio de 2010.