Caso Triumph – O relato das costureiras que foram “doadas” à Gramax
Este artigo foi originalmente escrito a 25 de Abril de 2018, em homenagem à luta das ex-operárias da Triumph.
Nada fazia esperar que a fábrica da Triumph, há quase 60 anos a funcionar em Sacavém como o maior empregador do concelho de Loures, fosse – num espaço de 16 meses apenas – vendida a uma sociedade de investimento, por sua vez decretada insolvente, e encerrada. Prepara-se agora para ser leiloada com um preço base de 5,7 milhões em Maio deste ano, segundo adianta a leiloeira responsável pela venda.
Num dia, em Janeiro de 2017, estava lá o Ministro da Economia a apadrinhar a transição entre empresas e a aplaudir o investimento de 1 milhão de euros pela modernização do negócio e manutenção dos postos de trabalho. E noutro, um ano depois, estavam as portas a fechar por insolvência, deixando meio milhar de mulheres na rua, muitas já com 3 salários em atraso. Mulheres que entraram na empresa ainda crianças e cumpriram o seu dever durante cerca de 30 anos, com família e bocas para alimentar. Permaneceram à porta dia e noite, a defender a casa e mobília que jamais lhes pertenceram, mas onde depositaram os seus sonhos e paixão pela costura, e onde viram desvanecer o seu futuro num ápice, a pretexto de um investimento que encobria afinal um despedimento colectivo.
Imagem gentilmente cedida por Las Piteadas
Onde estão estas mulheres agora?
O Fashion Revolution Portugal encontrou três destas ex-operárias num atelier de média produção em Lisboa. Bela, Carla e Lília, com 26, 28 e 29 anos de casa respectivamente, duas delas outrora chefes de produção, hoje em dia consideram ter a sorte de poder trabalhar ainda como costureiras, recordando com algum pesar como foi perceber por portas e travessas que a fábrica iria fazer parte do seu passado.
Já em 2014 a administração havia comunicado internamente às trabalhadoras “que a empresa já não era mais sustentável porque a mão-de-obra barata fazia muita concorrência” e porque o encargo com os seus salários “era muito elevado” – Lília adianta – “também não foi preciso dizerem muito, porque nós já sabíamos que tínhamos fábrica na China e na Índia”. “Houve 2 pessoas pelo menos que pediram para ir trabalhar para a China. E eles disseram que não, porque teriam de lhes dar casa e comida. E às de lá não têm de dar nada” – lembra Bela, assim que Carla aponta as evidências: “A mão-de-obra continua a ser muito mais barata”.
“E não é pelo facto da mão-de-obra ter sido transferida, que hoje entra numa loja Triumph e a peça é mais barata!” – anuncia Lília. “E a qualidade também nao está melhor!” – continua Bela – “Há pouco tempo estive a ver e os acabamentos estão péssimos, face àquilo que eles exigiam”.
Muitas das decisões que sucederam não foram recebidas com total surpresa por parte destas mulheres, que facilmente tiraram conclusões da falta de transparência por parte da administração: “Disseram-nos que iam procurar um novo investidor para a empresa (…) e que iam garantir os nossos postos de trabalho e a nossa efectividade” – explica Bela. E não houve despedimentos: “Fizeram a transação do negócio, e depois os que compraram [TGI] é que abriram insolvência”.
Bela recorda-se da altura em que a Triumph dividiu a empresa, pelos seus cálculos, por volta de 2010: “Eles fizeram as coisas bem feitas. A produção era uma empresa, e as vendas era outra”. “Quando uma perde, a outra nao é penalizada, porque a Triumph nunca pode ser um marca insolvente” – explica Lília.
As três costureiras confirmam em uníssono que já desconfiavam que este investimento estaria a esconder um plano de despedimento colectivo, ainda que lhes tenha sido garantido um ano de contrato. “Só podia [fazer parte do plano], porque quando há transição, é obrigatório essa empresa manter os postos de trabalho durante um ano. É mesmo obrigatório por lei!” – reitera Bela, com o indicador sobre a mesa.
Em Setembro de 2016, a fábrica da Triumph teria sido adquirida pela Têxtil Gramax Internacional (TGI), uma sociedade portuguesa criada pela grupo de investimento suiço Gramax Capital, com o objectivo – na altura comunicado – de modernizar a unidade têxtil. “Fomos dadas, oferecidas” – simplifica. “Aliás, o nosso patrão na altura disse-nos que até estava a pagar para ficarem connosco. Eu estou a pagar para que fiquem convosco, disse. Porque éramos uma empresa familiar e que se preocupava muito connosco” – passa o sarcasmo – “e nós agradecemos imenso, claro. No fim bateram palmas ao senhor e gostaram muito de o ouvir”.
A boa fé destas mulheres levaram-nas a coadunar com o novo sistema, muitas delas com familiares dependentes do seu salário. Mas cedo começaram a aperceber-se da situação em que tinham sido colocadas, quando em substituição da produção Triumph, poucos clientes estavam a compensar com entrada de encomendas. “A Gramax arranjou clientes durante o ano. Mas foi pouco! Porque os clientes estavam a dar-nos pouco material. Tínhamos pouco trabalho para tanta gente. E logo aí, as chefias aperceberam-se perfeitamente” – lembra Carla – embora as costureiras em geral não tivessem a mesma percepção, à conta das últimas encomendas Triumph a decorrer, que ainda resultaram em prémios de produção, e das novas formações que suportaram a mudança de produto.
Havia passado um ano da entrada oficial da sociedade de investimento. “Só a partir de meados de Outubro [de 2017] é que as costureiras se começaram a aperceber” – recorda Lília – “Começaram a ficar sem trabalho, começaram a ir para casa… Uma semana, duas, três… sem bilhete de vinda e tudo pago”. “Foi muito doloroso” – lamenta a chefe de secção – “As pessoas estavam ali paradas a olhar para nós”.
A gravidade da situação foi galopando: “No início de Dezembro, decidiram [a administração] que iam pagar menos 5 dias a toda a gente. Mas não avisaram ninguém”. “No dia em que as pessoas receberam o ordenado, é que souberam”. “Juntámo-nos todas e fomos pedir justificações ao nosso chefe. Entretanto já não eram só cinco dias. Já havia a possibilidade de não termos subsídio”. “Foi sempre empurrando o problema com a barriga” – resumem.
Quando a administração comunicou internamente que iriam abrir insolvência, “deram-nos um papel a dizer que quem quisesse podia ir para casa, que nos pagavam tudo” – avança Bela – “e, quem não assinou, ficou sempre lá”. Especialmente quando perceberam que havia começado um processo de delapidação dos bens da empresa. “Quando eles quiseram tirar material de lá de dentro, barrámos a entrada e não deixámos sair nada.”
Como sobreviver depois de décadas a fazer remates?
As nossas entrevistadas tiveram a sorte de tornarem-se costureiras polivalentes, ao longo das suas carreiras profissionais, fazendo parte das chamadas “células autónomas”. Talvez por isso tenham emprego hoje. Mas são excepções.
“Sei perfeitamente que o ordenado que eu tinha [na Triumph], nunca mais vou tê-lo.” – lamenta Lília. “Mas o trabalho era sempre o mesmo. Era sempre o mesmo sistema de trabalho. Quem fazia elásticos, fazia elásticos, quem fazia encaixe, fazia encaixe. E por norma, eram sempre as mesmas a fazer aquilo” – contrapõe Bela. A Carla explica como funcionava o sistema de produção para médias e grandes encomendas: “Haviam as células autónomas e as células funcionais. As células funcionais tinham 3 grupos: preparação, montagem e acabamentos. E isso era para encomendas grandes. Faziam-se 5 mil peças por dia”. “Nem todas as operárias têm a mesma capacidade.” – avança Bela – “Haviam mulheres que só faziam remates, não sabem fazer mais nada. Essas mulheres agora estão no desemprego”.
Mas nem tudo são más notícias, já que o novo formato de produção do atelier que as foi buscar literalmente à porta da fábrica (onde tentaram desesperadamente impedir a destituição da empresa), trouxe-lhes mais autonomia e criatividade.
“Aqui sinto-me bem” – admite Lília. “Para quem gosta daquilo que faz, é muito mais motivante e desafiante, do que lá [na Triumph]. Para já, porque aqui temos opinião. Lá não tínhamos” – explica Carla. “Nós aqui podemos, por exemplo, mudar a cor da linha, se acharmos que fica mais bonito e se a patroa concordar”. “Não só a linha como algumas moldagens” – acrescenta a colega.
“Não tínhamos voz, e isso era frustrante” – lamenta Bela. “Principalmente porque sabíamos que tínhamos de produzir aquela peça que alguém desenhou sem fazer a mínima ideia se era produzível” – explica Carla, com o aceno de Lília: “E, isto é um contrassenso, mas ainda que não pudéssemos criar, tínhamos de ensinar à mesma a fazer, e de forma prática!” – avança – “porque uma coisa é ensinar a quem sabe de costura, outra coisa é [ensinar] a quem não sabe”.
Hoje em dia, Bela, Carla e Lília mantêm contacto com algumas colegas, mas “tudo o que acaba por vezes é doloroso e cada um manifesta-se à sua maneira. Há quem se manifeste revoltando-se, culpando o mundo. Há quem não culpe ninguém. E depois há os que se viram uns contra os outros. É como um divórcio litigioso. Umas fazem o luto de uma maneira, outras fazem de outro. Nós optámos por nos mexer, porque se calhar, se ficássemos em casa, estaríamos a chorar sobre o leite derramado.” – suspira Lília – “Eu vim para aqui ganhar menos do que ganhava no fundo de desemprego, mas prefiro estar a trabalhar do que estar em casa”.
O Fashion Revolution Portugal agradece a estas três mulheres, pelo corajoso depoimento e força para inspirar outras mulheres na mesma situação. Pois casos Triumph há vários, e em Portugal infelizmente têm sido consecutivos nas últimas décadas, resultantes do lado mais nefasto do comércio livre e de um sistema de Moda assente na produção cada vez mais rápida e mais barata.
As ex-operárias da Triumph serão representadas pela Bela no Fashion Revolution Week em Lisboa, no dia 28, Sábado, no Impact Hub Lisbon, a partir das 10:00h. Sabe mais no evento.
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