Nossas falas são revolucionárias, nossas roupas são armaduras
Nossas falas são revolucionárias, nossas roupas são armaduras
por Mauro Almeida*
Dia 29 de janeiro é o Dia da Visibilidade Trans e Travesti. Dia de lutar e dar espaço de fala para quem ficou calada(o/e) por muito tempo, que sofreu a opressão de um sistema que vai contra tudo que somos. Dia de escutar a história daqueles que já se foram porque a sociedade não aguentou nosso brilho, nossa verdade. Mas esse dia de contar e dar visibilidade não se limita a um dia só. Se temos 365 dias para contar, prestigiar e mostrar que somos potência, porque que só enxergam as vitórias, as lutas e os lugares ocupados em apenas um dia?
Quando pensei em escrever sobre esse tema, levei uma pergunta junto a mim, “como a roupa influencia na minha sexualidade?”. Logo em seguida, eu me lembrei quando eu vestia as roupas da minha irmã escondido ou então calçava os saltos da minha vizinha, e analisando e vendo como essa história é complexa e observei que realmente você não se “torna”, você “nasce”, é o de ser quem você é.
Uma das minhas grandes revoltas hoje é ver que marcas, sejam grandes ou pequenas, só abrem espaço para a comunidade LGBTQIA+ no dia que é comemorado a visibilidade ou o orgulho ,e que mesmo assim continuam vendendo muito. Marcas essas que já tiveram vínculos com trabalho escravo, marcas sem propósito. Mas eu vejo também que existem muitas marcas incríveis nascendo e procurando por espaço, lutando contra o conceito de um capitalismo detestável e criando o conceito de ser autoral, sem preconceito, usando a moda como um novo conceito de liberdade.
É sobre usar a moda como um processo de desbravamento de sexualidade, pois a roupa que vestimos diz muito sobre quem somos. Para mim, Mauro Almeida, “ a moda foi um abre alas para a minha sexualidade, hoje é muito importante vestir uma saia dita como roupa de mulher e ao mesmo tempo estar com uma camiseta regata dita roupa de homem, porque isso passou anos dentro de mim pedindo para sair e eu não conseguia mais segurar, eu tinha que deixar sair mesmo que não soubesse o que era elx e hoje está liberte. E sim, eu sou mais feliz hoje, por estar aqui, por estar lá, por está por todos os lados, mas sempre com a roupa que me faz bem, mesmo sabendo que infelizmente a sociedade pode não aguentar a nossa luz.”
Por isso falo e reforço: dar atenção às falas de pessoas LGBTQIA+ é acreditar nos seus trabalhos e histórias, por isso convidei três querides que estão nessa luta de reconhecimento e de justiça por todes que já se foram por se revelar e mostrar toda a sua verdade e alegria para o mundo. Com vocês, as falas de Matheus Solem, Yara Canta, Arthur Giraldo e Wendell Colombani:
Matheus Solem @matheussolem
Desde pequeno, as peças de roupas sempre estiveram envoltas em minha história, seja nas peças que eu pegava no armário da minha mãe ou nas peças das bonecas que eu adorava brincar, ações feitas em segredo. Posteriormente, enquanto eu crescia, comecei a desenhar as peças que eu imaginava. Ainda me lembro da primeira revista que comprei: a ESTILO. Fiquei encantado com todas as composições estéticas e editoriais, e curioso pelos papéis que viam juntamente com a revista. Nem imaginava naquele momento que eram moldes. A moda sempre foi uma válvula de escape para a minha expressão e, com o avançar do tempo e minha proximidade com temáticas raciais, homossexuais, de gênero e demais pautas identitárias, comecei a me lapidar e usar a moda como potência para as minhas vivências subjetivas, que a cada momento se conectam e me empoderam. Com minha graduação venho aumentando a minha bagagem histórica e cultural, entendendo que as roupas sempre contam e escrevem histórias, sendo a segunda pele, nossa armadura.
Yara Canta @yaracanta
É nítido como a moda está interligada a nossa sexualidade, na verdade é uma ligação plena sobre as questões de gênero com roupa, por exemplo pra mim, minha maior experiência de gênero foi vestindo as roupas da minha mãe, e foi nesse momento que fui entendo essas questões, e quando a gente vai contra essa corrente das questões sociais do que é “masculino ou feminino”, a roupa acaba se tornando uma armadura, vira um instrumento de guerra.
Arthur Giraldo @arthur_giraldo
Quando recebi a pergunta “como a roupa influencia na minha sexualidade?”, demorei um bom tempo para entender como respondê-la, e isso se deve ao fato de que senti a necessidade de inverter a ordem desse questionamento para “como a sexualidade influencia na minha roupa” para depois retornar a pergunta inicial. Sinto que quando nos entendemos enquanto pessoas externas aos círculos da heteronorma nos permitimos explorar mais nossas construções de imagem, afinal se já não seremos aceitos de forma ou de outra qual o sentido em seguir as demais de suas regras? E nesse ponto se iniciou, particularmente, uma jornada que iria desde a construção de um bicha afeminada, porém que ainda não estava 100% confortável em sua forma, até o entendimento de si enquanto um corpo plural, de expressões livres e por muitos lido de forma abjeta, o entendimento de si enquanto um corpo não-binário. E nesse momento é que se torna possível retomar a primeira pergunta. A influência do vestir, tendo aqui o vestir para muito além da roupa propriamente dita, mas englobando todas as construções, significações e semióticas atribuídas pelo ato do vestir, na minha sexualidade. Não partindo do ponto “por quem EU me atraio”, mas questionando a perspectiva “quem se atraí por mim?”. E então se torna necessário, nesse momento, estabelecer a diferença entre os se permitem estar ao meu lado em um contexto fetichizado, exclusivamente sexual, e aqueles que me colocam em um espaço de afeto (e aqui pensando contextos tanto dentro quanto além do afeto tradicional e romântico)… Porque são realmente duas realidades completamente distintas… E, tentando me manter breve, se permitam sentir, explorar e amar fora do pacto da cisgeneridade.
Wendell Colombani @wendellcolombani
Acredito que esse processo, na minha vivência, se dê predominante em duas maneiras: de dentro pra fora e também o contrário.
Me expressar sempre foi um desafio, então a vestimenta vem significar para esse casco como um ato de fé. Fé que posso existir e lutar pela minha e nossas existências.
Sou filho de mãe e pai evangélicos, com uma adolescência regada à doutrinas e restrições… então ter fé foi muito importante para eu tomar coragem e botar a cara no sol, mesmo.
Hoje, eu busco formar uma linguagem, através também do vestir, que exprima essa fé, a de escolher com firmeza o que eu quero acreditar.
*Mauro Almeida é produtor(ra) de moda, estilista, luta junto com Fashion Revolution por uma moda mais clara e verdadeira,onde também faz parte do comitê racial, fundador(ra) do projeto Eco Retalizando, escreve sobre moda e comunidade LGBTQIA+.
Imagem: Segunda Marcha Trans de São Paulo | foto: Ricardo Aleixo | @ricardo.aleixo.