Não Somos Manequins Vazios À Espera Que Nos Vistam
Uma reflexão pessoal de Catarina João Vieira,
Editora-Chefe blue velvet editorials (@bluevelveteditorials)
Nos últimos anos, tenho vindo a refletir sobre a importância da roupa que visto, não só como uma paixão minha, mas também como algo que, acredito, nos transcende. A moda é intensa, íntima, complexa. Não é fútil. É uma realidade intemporal que, quer percebamos, quer não, faz parte de nós, como seres sociais e parte no nosso eu profundo.
Apesar da magia, do sonho, que envolve este mundo, também existe uma parte feia e tóxica que encobre realidades muito presentes na sociedade contemporânea. Trabalho infantil, salários precários, discriminação, supremacia branca, exploração de terras, colonialismo, racismo, a enumeração não pára. O Fast Fashion, entre outras cadeias de produção massiva, usa esses mecanismos e abusa do seu poder para sustentar um negócio de biliões de dólares e, apesar de alguns esforços que estão escondidos por estratégias de “greenwashing”, não é suficiente. As multinacionais responsáveis por este tipo de produção vão continuar a existir e, infelizmente, há um longo caminho a ser conquistado em termos de igualdade social para comprar produtos de qualidade superior e de produção sustentável. Além disso, uma transição justa deve envolver a criação de políticas laborais, de ocupação de território, e um forte compromisso das marcas em todas as frentes do seu modelo de negócio. As marcas são responsáveis por isto, mas o consumidor pode mudar esse paradigma que tem prejudicado certas comunidades nas últimas décadas. Essas empresas existirão e, infelizmente, a transição para uma realidade mais justa ainda tem um longo caminho a percorrer.
Como apaixonada por moda, tenho consumido muito mais do que é necessário, o que me tem vindo a incomodar, porque reparei que era algo inconsciente. Saldos, estratégias comerciais agressivas nas redes sociais, a manipulação é constante e a tentação também. O comportamento humano é essencialmente conduzido por estímulos e, a partir do momento que perdemos esse controlo, requer que tenhamos força mental para ter espírito crítico. É um processo. Comecei a fazer algumas pesquisas a nível pessoal, li artigos sobre o tópico e a realidade, exposta em alguns exemplos mencionados acima, é assustadora. A minha sensibilidade em relação ao que já tenho aumentou de uma forma que eu não esperava. Olho para as minhas roupas e pergunto: a camisola que estou a usar reflete trabalho infantil? O vestido que estou a usar está a ser produzido onde mulheres recebem 20 cêntimos por dia? As questões atormentam-me.
Não elimino o fast fashion do meu guarda-roupa, nem paro de o usar, mas reflito em não comprar mais, apenas em último caso e, trabalhar na reconexão com aquilo que já tenho. Participei num webinar sobre “Repensar a relação com as nossas roupas” no âmbito da Fashion Revolution Week e, esta conexão com o que vestimos é de facto, uma relação. Eu crio memórias, a minha avó e a minha mãe contam-me histórias sobre as peças que usaram, e por aí em diante. É uma história sem fim, e requer um certo grau de sensibilidade, de olhar para dentro de nós mesmos e, conectarmo-nos com o que está ao nosso redor, com a sociedade, o ambiente e, neste caso, com o que vestimos. O nosso estilo, a nossa personalidade, o nosso papel no mundo, não mudará com mais uma peça que vemos numa montra. Apesar de a moda ser um meio de comunicação do nosso estilo, não esqueçamos que a nossa voz fala muito mais alto.
Desafio-me todos os dias a repensar, criar e elevar o meu papel como cidadã, ao lado de uma educação incrível que tenho vindo a receber na Fashion Revolution Portugal, e de uma vontade e interesse em arranjar soluções para mudar este paradigma. Desafiem-se a vocês também! Conheçam-se, entendam os vossos sentimentos e emoções, pensem na comunidade, questionem quem fez as vossas roupas, leiam sobre o assunto, tomem decisões conscientes e, reconectem-se com aquilo que já têm.
Não somos manequins vazios à espera que nos vistam. Somos muito mais do que isso.