Mesmo sem referência, seja a referência

By Fashion Revolution

2 years ago

É o que ensina Néllys Côrrea, agente da Economia da Paixão, ilustrando os valores femininos que  despertam a consciência sustentável, plano de fundo do movimento #QuemFezMinhasRoupas 

Por Paula Costa com colaboração de Néllys Côrrea 

 

“Um mundo onde é preciso rotular para existir”. Este foi um insight de uma das trocas que experienciei com a  Guardiã da Matriz Feminina, Mari Cogswell. É o que justifica como todos eventos, campanhas, homenagens e  outros marcos do Dia Internacional da Mulher, mesmo aquelas que traduzem mais superficialidade comercial do  que verdadeiramente provocação cultural, cumprem com um importante papel a ser potencializado para além do  dia 8 de março. Na verdade, este dia já se tornou “mês da mulher”, mas aqui não me refiro à expansão da  celebração pelo viés da nossa obsessão com a contagem de horas, dias ou meses, que ainda nos ancora na era  industrial orientada à produtividade. 

Desde 1986, antropólogos estudam a sabedoria dos Amondawa, uma tribo da floresta Amazônica que marca as  fases da vida com a mudança de nome, isto é, através de uma passagem mais qualitativa do que a quantitativa que  usamos com o número de velas do bolo de aniversário. Viver o tempo sem contar as horas, reflete muito da  conexão com a natureza que somos e habitamos e é justamente esta dimensão que nos atribui a consciência de  protagonismo e pertencimento, movimento da Economia da Paixão, a qual sustenta a Era Digital – que inclusive,  também é conhecida como “era da consciência”.  

Com esta perspectiva, em nada surpreende o evento de inovação SXSW, que também aconteceu neste último  mês de março em Austin (Texas, Estados Unidos), discutir a evolução da Era Digital, trazendo para o palco  representantes de outras tribos indígenas que não honram o passar do tempo através do relógio – que, repare  bem, usamos cada vez menos para ver as horas -, mas sim pelos valores e propósitos que o tempo carrega. A  “ancestralidade” foi outro tema chave do festival que dialoga sobre tendências, uma bela provocação para a  compreensão da importância do respeito pela jornada, pela história e conhecimento dos aprendizados que nos  trouxeram para o presente, onde temos o poder de construir o futuro. 

Estamos falando de responsabilidade de legado, um dos princípios provocado pelo grito do movimento  #QuemFezMinhasRoupas do Fashion Revolution, abraçando a sustentabilidade sociocultural e ambiental que  ganha força a medida em que enxergamos os valores femininos, não somente para empoderar a mulher a ocupar  o seu papel fundamental e de direito em todos os espaços – muito menos em um único mês do ano -, mas também  para tornar a criatividade, o cuidado, a preservação, entre outros valores femininos, visíveis em todas as pessoas,  independente do gênero ou qualquer outro rótulo que nos rodeia. Assim, de forma individual e coletiva, estaremos  cada vez mais despertos para os novos modelos de negócios e dinâmicas sustentáveis da cadeia de produção na  Era Digital.  

Como inspiração de muitas destas virtudes a serem resgatadas e exploradas, compartilho recortes de um diálogo  – sendo o compartilhamento e o diálogo valores muito femininos! – com a Néllys Correa (@nellyscorreaoficial),  fundadora do Digitais Pretas (@digitaispretas), que conheci através de outra grande mulher, Camila Salek – colaboração e lógica de rede também esbarram em valores femininos a serem expandidos. O coletivo gerenciado  por Néllys, visa o empoderamento de empreendedoras pretas, dando espaço para muitas protagonistas do setor  de moda e correlatos. A todo momento o convite para esta leitura está em observar a profundidade e propriedade  de histórias que temos espalhadas pelo Brasil, como a de Néllys, entendendo a riqueza de identificar e reconhecer  a origem singular e o significado afetivo de tudo o que produzimos e consumimos. Afinal, o varejo e o comércio  de modo geral, é sempre feito por pessoas e para pessoas.  

O seu nome é “Néllys” e não “Nélly” e, uma vez, você me disse que costumam errar. Conta mais do seu  nome?

Néllys para a minha versão criança era algo que me tornava diferente em um mundo onde queria ser igual  a todas. Crescer com um nome de impacto numa sociedade que te quer igual, cinza, vivendo numa posição  neutra era um peso pra mim. Entendi que a Néllys era o meu presente: ser única, que nasceu com uma  marca e para deixar a sua marca por onde passa. O meu nome vem para coroar a rainha, que existia dentro  de mim, mas que demorou anos, aliás, décadas para eu reconhecer. E ter orgulho desta rainha é ter  orgulho de mim. Néllys Regina. Única. Especial. Uma mulher que segura, com orgulho, a coroa de rainha  trazida pela sua ancestralidade. Aceitei meu nome quando entendi que ele vem com uma marca, um  poder, um dom, que ninguém pode tirar.  

De onde você é e onde você mora hoje? 

Sou do interior do Rio Grande do Sul, uma cidade que me viu crescer, mas ao mesmo tempo, me colocou  limites, pois dizia que eu podia ser isso ou aquilo – ou me fazia entender isso. Sentia que a cidade era  pequena para mim, mas não entendia o porquê. Talvez eu estivesse crescendo de dentro para fora e  precisasse alçar novos vôos, que não limitassem o meu tamanho. Hoje moro em Gramado – RS, Serra  Gaúcha. Colonização italiana e alemã, eu sou uma das poucas pretas da cidade, o que fez eu despertar do  meu próprio eu e descobrir o meu propósito. 

Como foi a sua infância? 

Cresci em uma casa com 3 mulheres: minha mãe, minha tia e minha avó. Era um terreno com mais 2 casas,  um pátio enorme, onde eu era o “xodó” dos meus primos e extremamente paparicada por todos, porque  modéstia à parte, era linda. Aos 5 anos, nos mudamos para o centro da cidade, em uma casa grande, de  esquina, de tijolos à vista e aberturas verdes. Eramos os únicos negros na rua, e isso foi algo que fez com  que me isolasse, cresci sozinha e sem muitos amigos. Para as crianças brancas da minha escola particular,  eu era a amiga que não levava o pai na época do dia dos pais, a que estava sempre com o mesmo  penteado, porque o cabelo não crescia, a bolsista. Para as crianças pretas era a metida, e mimada, cheia  de frescura. Fui filha única até meus 11 anos, o que fez o meu vínculo com minha mãe e minha tia ser  maior, pois éramos só nós. Até chegar o Dudu, meu único irmão – ele era terrível e ainda é!  

Você falou sobre um poder, um dom seu que ninguém pode tirar. Ele existia nesta infância? 

Crescer sendo filha de mãe solo, bolsista em uma escola católica, com poucas pessoas que gostavam de  mim, fez com que eu exercitasse um dom, me adaptar, criar personagens aceitáveis para poder transitar  por vários meios e não sofrer. Acho que ser eu era algo difícil, então eu era outras de mim. Várias Nellys  dentro de uma Regina, que insistiam em ter uma vida e uma liberdade que talvez eu mesma não me  permitisse. 

Cada um desses personagens era como uma parte de você, certo? Você já pensou se sentiu falta de  poder ser você por inteiro naquele momento? 

Fui entender isso somente perto dos 40 anos. Vivi por tempos agradando os outros, seguindo desejo dos  outros, os sonhos dos outros. E onde estava “eu”? Será que eu poderia errar? Sair de casa “desmontada”?  Desagradar alguém? Ter a minha opinião? Demorei para aceitar que sim. Hoje é algo que não abro mão:  minha vida, minha opinião, minha liberdade sendo eu. Gostem ou não. Sou eu! 

O sentimento da solidão da infância ainda existe? Foi um motivador para a criação do coletivo Digitais  Pretas? Aliás, quantas são? 

Na verdade essa solidão não sumiu, mas hoje eu vejo que só quem pode superá-la sou eu mesma. Com  certeza esse sentimento foi o motivo do Digitais Pretas nascer, porém, hoje entendo que temos que estar  acompanhadas de nós mesmas para, só assim, poder nos unir e nos fortalecer com outras pessoas. Hoje  somos 99 mulheres de até 62 anos, de 4 regiões do Brasil e 3 países da Europa.

Com o que você já trabalhou até aqui? A quais atividades se dedica hoje? 

Já fiz de tudo: vendedora, empacotadora, cabeleireira, cozinheira, babá, entreguei panfletos, fui  professora de dança, sacoleira,… Até conseguir abrir uma loja e ser a primeira mulher negra empresária  na minha cidade. E acho que ainda sou a única. Também sou palestrante e mentora de negócios femininos. 

Sou uma agente de transformação. Depois de centenas de tombos, aprendi a levantar, limpar toda a  sujeira, fazer com que as cicatrizes se curassem para andar. E ainda ando, muitas vezes até corro, para  fazer com que o tempo seja meu aliado e, principalmente, para que eu possa acordar, levantar, estimular,  impulsionar e inspirar outras a virem comigo.  

A Digitais Pretas funciona como uma comunidade, o que muitas empresas estão buscando criar tanto  entre colaboradores, quanto entre consumidores. O que você considera mais fácil: ter criado ou fazer a  gestão dessa comunidade? 

Está conectado. O desafio é fazer com que o meu movimento, movimente toda essa  comunidade. Estamos numa fase de mudança, que tenho certeza de que começa por mim, para alcançar  esse público de uma forma mais intensa. Lidar com mulheres pretas é lidar com dores e traumas, mas  também é lidar com potências, resistência, criação e movimento. Temos 99 mulheres no clube de  assinantes, porém estamos com quase 10k de seguidores no perfil do Instagram e pelo grupo já passaram  mais de 200 mulheres. 

A Economia da Paixão fundamenta a Era Digital e se dá a partir do movimento de PROTAGONISMO E  PERTENCIMENTO. Justamente a partir desta lógica estabelecemos conexões, criamos redes e damos  vida às comunidades. O desafio está em entender que a criação e a manutenção dessas comunidades  não dependem em primeiro lugar da cultura de pertencimento, mas sim do protagonismo. Você enxerga  como o protagonismo de cada membro da Digitais Pretas nutre as conexões que geram o  pertencimento? Faz sentido para você? Como você está alimentando o seu protagonismo para manter  essa rede fluindo? 

Por tempos eu tive medo do palco. De ser vista e aparecer, porque esse não era o meu lugar. Agora eu  tenho total certeza que sou a mulher que nasceu para esse lugar, esse é o meu desafio, meu propósito,  meu motivo de acordar todos os dias: fazer com que eu, como uma mulher preta, consiga ocupar lugares,  e trazer outras junto. Ser uma referência para mulheres pretas, mulheres não pretas, mulheres que foram  silenciadas, mulheres que ouviram que eram velhas demais para reiniciar suas vidas, mulheres que  ouviram que deveriam servir aos seus maridos. Eu quero ser essa mulher! 

Está tão bom… Conta mais alguma coisa? 

Tenho uma lembrança que me motiva! Há uns dois anos fui na clínica que cuida do meu sorriso. Eu e meu  turbante, rindo e conversando com as funcionárias. Até que uma menina negra, de uns 5 ou 6 anos, me  viu e parou me olhando. Eu senti que era “eu criança” olhando para o meu “eu adulta”. Eu queria ter tido  essa referência, porém isso é o que eu quero ser hoje: “Mesmo sem referências, seja a referência”

Paula Costa é comunicóloga formada em Publicidade e Gestão de Varejo pela graduação e MBA da ESPM, com especializações  complementares em inteligência de mercado, pesquisa, antropologia, futurismo e inovação e passagem por instituições globais como Hyper  Island e Tel Aviv University. Baseada na Europa, transita por diferentes países e eventos de arte, design, tecnologia, inovação, negócios e varejo,  realizando curadoria de comportamentos, movimentos e tendências, que se fazem insumos dos insights que compartilha em grupos globais de  inovação, como LinkedIn Creator e apoiadora do Fashion Revolution Brasil, além de aulas de Pós Graduação e MBA de instituições como a  ESPM, palestras, workshops, mentorias e consultorias de tendências, inteligência estratégica e inovação, baseada na visão da Economia da  Paixão – tema do livro de sua co-autoria. 

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