Indústria da Moda: a denúncia como meio de erradicação do trabalho escravo

By Fashion Revolution Brazil

3 years ago

*por Flávia de Oliveira Santos do Nascimento

A indústria da moda engloba uma grande variedade de atividades econômicas, que inicia com a criação de produtos, passa pela fabricação, até a distribuição dos mesmos no mercado consumidor. Essa indústria inclui desde criações personalizadas até as produções em série. Ao longo do último século, a indústria da moda consolidou-se como uma grande potência. Englobando indústrias têxteis e de vestuário, elas constituem a quarta maior atividade econômica mundial, depois da agricultura, turismo e informática (LEAL, 2002). 

No Brasil, o setor da moda é o segundo maior empregador da indústria da transformação, perdendo tão somente para o setor de alimentos e bebidas (juntos). A indústria da moda também representa o segundo maior gerador do primeiro emprego no país (ABIT, 2018). 

Desde a década de 1980, os mais poderosos fabricantes do mundo declaram que produzir bens é tão somente um aspecto incidental em suas operações, e que o segredo na obtenção do sucesso está em reduzir estrutura física e empregados, aumentando o investimento em imagem comercial (KLEIN, 2008). Para alcançar tal objetivo, as empresas de moda passaram, da vez mais, a terceirizar a produção, muitas vezes para países do exterior. Os terceirizados, por sua vez, têm como única preocupação atender as encomendas dentro do tempo e do orçamento combinados.

Entende-se, de forma ampla, que o conceito de trabalho em situação análoga à de escravo seja todo aquele que desrespeita a dignidade da pessoa humana, como bem conceituado por Miraglia (2008): 

“A essência do trabalho escravo contemporâneo, e o que o torna tão repulsivo, é a ofensa ao substrato mínimo dos direitos fundamentais do homem: a dignidade da pessoa humana, em ambas as suas dimensões. É aquele labor que se desempenha com o rebaixamento da mão-de-obra a mera mercadoria descartável e donde o capitalista aufere seu lucro, principalmente, pela superexploração do homem-trabalhador.” (p. 153).

Dessa maneira, os episódios contemporâneos de trabalho escravo causam repulsa porque privam o ser-humano de sua essência mínima, ou seja, retiram de sua sobrevivência, a dignidade. Apesar da existência de vários instrumentos normativos no Brasil para a coibição dessa prática, os resultados ainda são bastante pequenos (REMEDIO, 2015). 

A realidade contemporânea do trabalho análogo ao de escravo no Brasil está muito ligada à indústria da moda. Assim como está intimamente relacionada aos casos de terceirização de mão-de-obra.

Sobretudo no setor da moda, o sistema de produção capitalista, por si só, contribui para o aumento do trabalho escravo, uma vez que o capital predomina sobre os direitos individuais e sociais do trabalhador. O modo de produção e a tensão existente entre capital e trabalho vem reduzindo, nos últimos anos, o significado do trabalho humano, atrelando-se apenas ao sentido econômico. (MIRAGLIA; RAYHANNA, 2018). 

Disso se explica o fato do consumidor final não saber (ou fingir ignorar) as condições em que a peça de vestuário foi produzida, fazendo com que a origem do produto não influencie no seu poder de escolha no momento de adquiri-lo (SÃO PAULO, 2006). 

No Brasil, segundo a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia, desde 2003 até junho de 2020, 55.004 trabalhadores foram resgatados e libertados do trabalho análogo ao de escravo.

A fiscalização é feita pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e culmina em identificar empresas que se utilizam de trabalho análogo ao de escravo. Com a fiscalização tem início o processo administrativo advindo do auto de infração, que termina com a prolação de decisão irrecorrível.

O Ministério do Trabalho divulga anualmente uma “lista suja” de empregadores que se utilizam do tipo de mão de obra escrava. Criada pela Portaria 540/2004, e vigorando hoje pela Portaria Interministerial 04/2016, a “lista suja” inclui o nome dos empregadores que foram condenados no processo administrativo.

Todavia, para que o MPT consiga ampliar seu espectro de fiscalização, as denúncias são essenciais. E basta qualquer cidadão acessar o link https://mpt.mp.br/pgt/servicos/servico-denuncie para fazer uma denúncia.

As principais áreas de atuação do Ministério Público do Trabalho, que podem ser objeto de denúncias são:

  • Falta de igualdade de oportunidades e discriminação nas relações de trabalho;
  • assédio moral nas relações de trabalho;
  • trabalho escravo degradante;
  • exploração do trabalho da criança e adolescente
  • meio ambiente do trabalho inadequado;
  • fraudes trabalhistas;
  • falta de liberdade sindical;
  • irregularidades trabalhistas na administração pública;
  • Combate a terceirização ilícita dos trabalhadores.

Caso o denunciante prefira, poderá ir pessoalmente ao Ministério Público do Trabalho de sua cidade e fazer diretamente sua denúncia.

Além disso, o canal do governo federal https://www.gov.br/pt-br/servicos/realizar-denuncia-trabalhista disponibilizado pelo Ministério da Economia também recebe denúncias de trabalho análogo ao de escravo, que pode ser feita, inclusive, de forma anônima.

Por fim, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos disponibiliza a linha telefônica Disque 100 para denúncias de qualquer violação aos direitos humanos.

Somente com a participação de toda a sociedade, seja com o consumo consciente, seja com denúncias efetivas, a situação dos trabalhadores em condição de escravidão será efetivamente reduzida.

*Flávia de Oliveira Santos do Nascimento é Mestre e Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Santos. Especialista em Direito Empresarial. Advogada. Professora da graduação e pós graduação e coordenadora do grupo de estudos e da Pós Graduação em Fashion Law da Universidade Católica de Santos.

 

REFERÊNCIAS:

MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira; OLIVEIRA, Rayhanna Fernandes de Souza. A Reforma trabalhista e o trabalho escravo contemporâneo: análise dos impactos da terceirização irrestrita e da banalização do trabalho em sobrejornada. In: MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira; HERNANDEZ, Julianna do Nascimento; OLIVEIRA, Rayhanna Fernandes de Souza (Org.). Trabalho escravo contemporâneo: conceituação, desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 83-101. 

REMEDIO, José Antonio. REMEDIO, Davi Pereira. A proteção penal contra o trabalho escravo contemporâneo no ordenamento jurídico brasileiro, in BRAGA, Ana Gabriela Mendes et al (Org.). Formas Contemporânea de Trabalho Escravo. São Paulo: PPGD, 2015. Disponível em https://www.franca.unesp.br/Home/Pos-graduacao/Direito/e-book-gt1bfinal.pdf acesso em 10 de abr de 2022. 

SÃO PAULO, Município. Câmara Municipal de São Paulo. Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a exploração do trabalho análogo ao de escravo, 2006. Disponível em: http://justica.sp.gov.br/wpcontent/uploads/2017/07/CPI20do20trabalho20escravo1.pdf, acesso em 10 de abr de 2022.