Cota não é esmola, é reparação histórica!
Por Mauroa Spineler e João PedroQuer ver de perto o racismo estrutural no Brasil? De acordo com Mauroa Spineler, integrante do Comitê Racial do Fashion Revolution Brasil, e João Pedro, pesquisador e palestrante sobre ancestralidade africana, basta falar sobre cotas, que surgirão uma série de opiniões sobre o assunto. Assim como a artista Bia Ferreira em sua música “Cota Não é Esmola”, os autores também defendem a ideia de que cota não é esmola e, sim, reparação histórica. Em novo texto publicado no blog Fashion Revolution Brasil, Spineler e Pedro traçam um paralelo entre moda, ensino e cotas. Confira a seguir!
____Quer ver o racismo estrutural no Brasil de perto? Basta falar sobre cotas, que surgirão diversas opiniões a favor ou contrária a pauta. Vale lembrar, em primeiro lugar, que o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ADPF 86/2012 e no ADC 41/2014, julgou como constitucional a política de cotas e também o banco de identificação, ou seja, eles são legalmente constitucionais.Vivemos em uma sociedade estruturada no racismo e no sistema da branquitude. E, quando se fala em “branquitude”, não é da pessoa branca em si, e, sim, do sistema opressor que desde sempre negou a educação básica e pública. De acordo com a professora e doutora Edileuza de Souza, em “1837 foi constituída uma lei que proíbe a entrada de negros na escola”. Essa lei perdurou até os anos 50 e logo após o fim dela, um grupo de negros e negras da Paraíba realizaram o primeiro ato para reivindicar a educação para seus filhos.
O papo sobre cotas não é só sobre ter alunos, alunas e alunes negros dentro das universidade, é sobre ter representatividade e desenvolvimento cultural. O abuso e a mercantatilização de corpos, é a estrutura de poder e dominação estabelecida pelos racismo, dito isso, colocar negros nas univerdades não faz do branco um herói, algo que mostra-se tão gigante como o conhecimento. Então, é só pensar que, se a gente reprime, oprime e inviabiliza aquela voz, estamos também perdendo uma fonte de conhecimento e inovação – algo que eu, Mauroa Spineler, gosto de chamar de “síndrome da branquitude”, quando o branco sente-se no direito de ocupar espaços que são legalmente negros. Um bom exemplo é a fraude de cotas no sistema público de educação, mas reconheço, também, que voltar a falar sobre tal assunto seria um nível de retrocesso gigantesco para algo que já está estudado e determinado por lei.
O que se propõe com a lei de cotas raciais no Brasil não é um pedido de esmola, de notas, oque se espera é a diminuição de um descompasso histórico que já vem de muitos anos.
Reparação histórica é um pequeno ato de uma dívida que nunca será paga, e esta é sobre a maior barbárie que já aconteceu. Foram seres humanos que tiveram seus corpos marginalizados e deslegitimazados por um processo colonizador, pessoas que tiveram seu direito de viver negado e, mesmo assim, produziram durante 388 anos uma evolução de trabalhos e tecnologias por quem teve que viver nas sombras. Em Descolonizando o Conhecimento, palestra-performance, Grada Kilomba fala que nós “não estamos lidando com a coexistência pacífica de palavras e, sim, uma hierarquia violenta que determina quem pode falar”.
Na voz João Pedro.
Como um corpo negro no mundo, eu, João Pedro, falo a partir das cotas raciais para pretos e padros, população que desde o perído colonial foi sequelada pela forma de sistema que instalou-se no brasileiro durante o período da invasão colonial y se perpetua até hoje. Para um sistema de cotas funcionar, é necessário que uma estrutura se mova junto com ele.. Caso contrário, essa lei será falha y provocará ainda mais movimentações negativas. Mas que estrutura é essa? Já não é suficiente para nós, população negra, ter a cota presente nas universidades? Esses questionamentos são bastantes recorrentes nas rodas de debates ou nas rodas de bares, quando o assunto chega e nossas amizades dão sua opinião.
A estrutura que deve montar-se, como disse a professora Vera Rodrigues em uma live, deve ser visualizada como um tripé, onde existe a entrada (primeiro pé), a permanência (segundo pé) y a oportunidade de sucesso (terceiro pé). Se pensarmos na lei de cotas sem esses princípios, ela será falha! A entrada de corpos negros na universidade é de extrema importância, a possibilidade de adentrar em um concurso é de extrema importância, mas, se só é possível entrar sem apresentar um suporte, é um convite ao fracasso. É como pegar uma pessoa que nunca jogou futebol, entregar a chuteira e falar “sabe o que é gol? Vai lá e faz 2!”. Não estou duvidando aqui da capacidade de cada pessoa negra que usa cotas para adaptar-se ao âmbito acadêmico ou nos trabalhos ofertados por concurso. A intenção é evidenciar que se não nos entregam um suporte, nossa vida será ainda mais difícil.
Colocar pessoas negras dentro de uma universidade para estudar pessoas brancas não é revolucionário ou decolonial, é uma prática racista que nos períodos coloniais era conhecido como o “processo civilizatório”, onde a pessoa negra tinha que abandonar sua essência afro para se enquadrar na lógica europeia ocidental.
Em minha pesquisa na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB/CE), que está disponível na biblioteca da universidade, pude analisar a grade curricular do curso de História y, dos 176 nomes de autores presentes na bibliografia das disciplinas obrigatórias do curso, somente 18 eram de pessoas negras y apenas 3 eram mulheres negras. Muitos artigos já foram publicados apontando como a Unilab apresenta uma característica decolonial y pode até ser, mas a mesma continua racista, pois não utilizar pessoas negras em sua grade curricular configura-se como racismo epistêmico. Devemos ter cuidado com as narrativas utilizadas por pessoas brancas em espaços de poder, pois como a mesma professora Vera Rodrigues me disse em minha defesa de TCC, “não é porque um sistema é decolonial que ele é antirracista”. Pensarmos apenas nessa lógica decolonial é termos “delírios de revolução”, como apontei no meu trabalho com o projeto político curricular do curso de História da Unilab.
Então, do que adianta corpos negros entrarem nesses espaços se ainda vão ter que passar pelo mesmo processo de embranquecimento epistêmico?
Temos que pensar em cotas para além da entrada, temos que pensar a permanência embasada no ConheciPreto, termo que desenvolvi na Unilab, temos que pensar as cotas visando também as oportunidades de sucesso. Assim os corpos negros não irão se preocupar com o mercado de trabalho. Não adianta pensarmos e trabalharmos com o antirracismo e as empresas que utilizam o sistema de cotas buscarem apenas pessoas negras que trabalham que nem brancas.
As cotas foram uma vitória na nossa história, conquista de muito sangue y suor dos movimentos negros em geral, mas existem ainda muitas camadas que precisam ser debatidas para que esse sistema seja realmente reparativo para com os corpos marginalizados y excluídos pela lógica europeia ocidental padrão.