Como nos organizar em comunidade e ressignificar nossas relações

By Fashion Revolution Brazil

4 years ago

por Larissa Duarte | Jurema*

As ações coletivas começam primeiro em cada indivíduo em particular. Depois estando mais integrados, nos relacionamos uns com os outros de forma confiante, mais coerentes e convergentes.

A primeira relação de cada um começa consigo mesmo e com o próprio corpo. Para Merleau-Ponty, o corpo é o mediador entre a consciência e o mundo; contudo, esta mediação frequentemente escapa à consciência, que não considera o corpo e seus órgãos como os veículos de suas relações (Nóbrega, 2008). Para isso, cuidar do corpo como um todo é essencial. Meditar, por exemplo, pode ser um passo importante. Se trata da prática de silenciar a mente, de sentir as condições do corpo no presente e detectar e pedir ao corpo para parar os esforços. Acompanhar as sensações do corpo, a respiração e desta forma, cuidar das qualidades da nossa presença. Tudo isso para propiciar a criatividade e o agir implicado.

O próximo passo então é considerar as relações na sociedade e como nos organizamos no coletivo. A pandemia COVID-19 impactou diferentes aspectos da vida, demandando as sociedades a reverem suas práticas e normativas, desde a forma como as pessoas vivem e trabalham, a forma como as empresas interagem com seus clientes, como os clientes escolhem e compram produtos e serviços, e como eles fornecem suas redes de produção (Barbulescu et al., 2021). Ao mesmo tempo, relações mais complexas de interdependência e co-criação são compreendidas, quando realizamos o quão estamos conectados uns com os outros, incluindo pessoas e elementos ambientais. Assim, abre-se um amplo cenário para a discussão, integração e prática sobre a responsabilidade coletiva.

No livro “A Vida das Plantas” de Emanuelle Coccia (p.72, 2018), a autora explica a relação de todos os elementos no ecossistema, “se tudo está em tudo, é porque no mundo tudo deve poder circular, se transmitir, se traduzir”. Em outras palavras, toda ação é interação e influência recíproca. Então, se o mundo está em todos seus entes, isso significa que todo ente é capaz de transformar o mundo (Coccia, 2017).

Na biologia, no estudo sobre ecossistemas intitulado “Organisms as Ecosystem Engineers” de Jones et al. (p. 373-386, 1994), os pesquisadores apresentam a seguinte definição: “Engenheiros de ecossistemas são organismos que direta ou indiretamente modulam a disponibilidade de recursos (além deles próprios) para outras espécies, causando mudanças de estado físico em materiais bióticos ou abióticos. Ao fazer isso, eles modificam, mantêm e ou criam habitats”.

O ecossistema nos negócios, tornou-se uma analogia comum para descrever as interações complexas, dinâmicas e interdependentes das organizações. Konietzko (2021) define o ecossistema como set de atores – produtores, fornecedores, prestadores de serviços, usuários finais, reguladores, organizações da sociedade civil – que contribuem para um resultado coletivo. A maneira clássica como as empresas operam considera seu produto ou serviço e como competir no mercado com ele. Mas a perspectiva de um ecossistema considera como cada ator se encaixa em um sistema maior. Desta forma, podemos falar em atitudes mais abrangentes e holísticas, além da sustentabilidade, para a resiliência do ecossistema. 

Para Manzini e M’Rithaa (2016) a noção de resiliência (a capacidade do sistema de lidar com o estresse e falhas locais sem colapso) está se tornando parte do vocabulário de mais pessoas e organizações e deve entrar nas agendas dos formuladores de políticas para ser incluída entre objetivos e ações práticas. Resiliência é antes uma pré-condição técnica, com base na qual muitas sociedades podem conviver, incluindo diferentes características sociais e culturais. Essa diversidade e complexidade são a base de sua resiliência sua adaptabilidade às mudanças dentro seus contextos.

Trazendo para a moda, ressignificar as relações criativas e produtivas no setor têxtil e moda de uma maneira mais integrada e ampliada, inclui considerar cada participante do ecossistema, suas funções, propósitos, responsabilidades e como comunicar e interagir de maneira correta com cada um. Além de despertar noções sobre economia circular e de forma bem prática, motivar a reflexão sobre relações trabalhistas, uso de materiais e processos mais adequados para fabricação de tecidos e produtos acabados.

Manzini e M’Rithaa (2016) falam também sobre “sistemas distribuídos” (ou seja, redes de vários elementos interconectados), que são impulsionados pelo poder das redes tecnológicas. E podem trazer por exemplo, a redescoberta do artesanato tradicional e da agricultura local, o fomento a investimentos internacionais, a busca por sistemas de fabricação de alta tecnologia e em pequena escala, capazes de suportar novas formas de micro-fábricas em rede (como proposto por fab labs e pelo movimento maker).

No caso do uso de materiais de origem vegetal, como fibras orgânicas e tingimentos à base de plantas, por exemplo, está se optando pelo uso de materiais renováveis e biodegradáveis. Que podem ser cultivadas em formatos mais conscientes em relação ao meio ambiente e as pessoas. Deste modo, abordagens coexistentes e co-evolutivas visam desenvolver e implementar formas de agricultura mais saudáveis, como na permacultura, agroecologia, agricultura biodinâmica, agricultura sintrópica, etc (Pigford et al., 2018). Juntamente com o potencial para a criação de bioeconomia, apoio a agricultura familiar e circuitos curtos de produção, beneficiamento e distribuição.  No caso, de produções muito complexas, fragmentadas e ainda com baixo nível de rastreabilidade, como na moda, desafios de integração na logística e comunicação precisam ser trabalhados.

Nesse sentido, o pensamento dos ecossistemas de inovação pode oferecer um conceito útil, que é apropriado para a multifuncionalidade, com o potencial de melhor apoiar o desenvolvimento de territórios, projetados para realizar inovação coletiva apoiando à regeneração (Pigford et al., 2018).

*foto: Kiko Moreira, 2019.

Sobre a autora:

Larissa Oliveira Duarte – designer de moda e pesquisadora, mestre em Negócios Internacionais (Leeds Beckett University) e mestre em Têxtil e Moda (Universidade de São Paulo). Se dedica a pesquisa na área das fibras vegetais, design e artesanato agrofloresta e ecossistema de inovação. Co-fundadora das startups Jurema e Confio.eco.                                                       

Jurema – startup brasileira que trabalha com agrofloresta focada na produção de materiais têxteis, como fibras e tinturas vegetais. Atua em três frentes: educação, consultoria e pesquisa e desenvolvimento.

 

Referências 

Bărbulescu, O., Tecău, A. S., Munteanu, D., & Constantin, C. P. (2021). Innovation of Startups, the Key to Unlocking Post-Crisis Sustainable Growth in Romanian Entrepreneurial Ecosystem. Sustainability13(2), 671.

Manzini e M’Rithaa (2016) Distributed Systems And Cosmopolitan Localism: An Emerging Design Scenario For Resilient Societies Sustainable Development Sust. Dev. 24, 275–280 (2016) Published online in Wiley Online Library (wileyonlinelibrary.com) DOI: 10.1002/sd.1628

Pigford, A. A. E. Hickey, G. M., & Klerkx, L. (2018). Beyond agricultural innovation systems? Exploring an agricultural innovation ecosystems approach for niche design and development in sustainability transitions. Agricultural Systems, 164, 116-121.Nóbrega, T. P. D. (2008). Corpo, percepção e conhecimento em Merleau-Ponty. Estudos de Psicologia (Natal)13(2), 141-148.

Coccia, E. (2017). A Vida das Plantas – uma metafísica da mistura.