Coluna SILVÉRIO: O que realmente aprendemos com a Cultura do Cancelamento?
pelo nosso colunista, Rafael Silvério*
Com as mídias sociais se tornando uma voz mais aguda do que os outros veículos de comunicações tradicionais, antes o rádio e depois a televisão que hoje disputa com as redes sociais e produtos de streaming, o poder nunca esteve tanto nas mãos dos consumidores, que temos um “livre arbítrio”, cada vez mais disputado para uma condução, de optar.
Se antes os que detinham poder de voz, apenas impunham suas escolhas ao público, hoje os consumidores podem revidar sua indignação usando suas mídias e até a influência social para pressionar uma mudança, seja não consumindo os produtos destes. Quando falo de produto, me refiro aos tangíveis e os intangíveis, de impacto ambiental, social e digital.
Ao olharmos os cancelados que tiveram a punição mais densa nos últimos tempos, há uma distinção de cor, pois o racismo estrutural faz com que uma pessoa negra quando cancelada seja submetida a uma série de falas que replicam esse racismo a ponto de romper as estruturas psíquicas destas. No país que condena de forma perpétua mulheres negras em reality shows e dá mais espaço para um homem branco agressor.
Estas agressões dadas por centenas de pessoas congela o autor do erro dentro processo evolutivo, o erro faz parte de um acerto futuro, é só pensarmos na cultura de startups estadunidenses nas quais na hora de desenvolver um aplicativo ou software fazem versões betas como prototipagem antes do lançamento e atualizam tentando aprimorar o seu produto a partir das críticas dos cliente.
Se formos a fundo na ancestralidade africana existem tribos sul africanas com um método de solucionar conflitos, quando um indivíduo comete um ato prejudicial este é levado para o centro da aldeia, e toda a tribo vem e o rodeia. Durante dois dias, eles vão dizer a este todas as coisas que este já fez. A comunidade enxerga aqueles erros como um grito de socorro então se unem então para erguê-lo, para conectá-lo com sua natureza, para lembrá-lo de suas raízes.
Há uma importância imensurável ao apontar os erros, porém a repetição destes pode deixar o agente da ação preso pelo peso da culpa, e não permitindo que ele se responsabilize pela atitude e transmute a situação em positivo. Aumentando mais a solidão, e validando o sentimento de não acolhimento.
Hannah Arendt, na obra “A Condição Humana”, propõe o perdão como categoria de pensamento que permite libertar o homem da irreversibilidade das suas ações (e, no âmbito das ações irreversíveis, particularmente, permite lidar com o mal não intencional).
Então porquê o perdão é fundamental para a evolução das relações humanas, e regenerar as partes que não foram lesadas completamente? Eis aqui a minha percepção, que assim como o meio ambiente se regenera, perdoar é sobre a renúncia de ressentimento e transgredir oferecendo espaço de cura para o trauma e vulnerabilidade.
Escolher a compaixão como solução, está longe de ser a mais fácil, e o cancelamento é fruto da reatividade e do imediatismo dos tempos que vivemos também é uma sinalização do consumidor que atitude em questão não foi bem aceita, mas esse movimento abre precedentes para a perpetuação de ódio gratuito enraizados em brecha de manifestações de racismo institucional com pessoas negras.
Quando notamos que há dois pesos e duas medidas para os cancelados negros, entendemos a estrutura racista se movimentando para limar o ciclo de pessoas influentes, e o perdão também não impede o desenvolvimento dentro da jornada destes.
A equação complexa que é o perdão, é importante salientar que se distingue da anistia e a reconciliação “o que se reconcilia carrega voluntariamente o peso que o outro leva de qualquer modo. Isso significa que restabelece a igualdade. Assim, a reconciliação é exatamente o contrário do perdão, que estabelece a desigualdade” (Arendt, 2002, p.4 I, jun-1950) se diferenciando muito de como o perdão é encarado em outras religiões ocidentais. Um ponto interessante é a visão budista para o tema, pois o ato de perdoar tal como idealizamos pressupõe que exista uma pessoa certa (em posição superior) e outra pessoa errada (em posição inferior) baseado em julgamento de juízo de valor, então a proposta é compaixão, a compreensão e aceitação do outro.
Se estamos dentro dessa esfera discutindo a sustentabilidade das relações, impondo para que essa indústria se modifique, não podemos romper completamente. É um paradoxo complexo pensar que estar nesse lugar de perdoar, é querendo ou não pode vir de um lugar de juiz severo, mas também pode ser um lugar de identificação com eu frágil e masoquismo que se relaciona, cada um de nós tem que entender a dosagem e as escolhas das batalhas que queremos travar, já que o perdão não é necessariamente uma reconciliação;