Quem fez minhas roupas? As vidas por trás do que vestimos
Essa reportagem não é sobre sobre o Fashion Revolution. Esse texto não é sobre CEOs de marcas, estilistas famosos ou donos de facções. Estas são histórias da história de quem faz o que vestimos. E só algumas.
Como quase toda a história tem um começo, essa iniciou com nosso desejo de celebrar quem fez nossas roupas. De dar voz às vidas que se entrelaçam nas nossas através das roupas. De ser espelho pras mãos que costuram essas roupas. Porque a roupa, sozinha, é pouco. Mas quando se veste e se relaciona com a gente, vira muito.
Contextualmente, nosso movimento nasceu em 2014 de um parto muito doloroso. Doloroso porque foi resposta a uma das maiores tragédias da história, quando a vida valeu menos e um edifício que produzia itens de vestuário para grandes marcas mundiais, em Bangladesh, desabou e fez ruína a vida dos mais de 1000 mortos e outros 2500 feridos que deixou.
Nascemos dessa dor com vontade de ser mudança. Crescemos em mais de 100 países e hoje atuamos sob a pergunta #quemfezminhasroupas. Entre debates, palestras, conversas, educação e comunicação, construímos um movimento que objetiva transformar a moda num universo justo, transparente, harmonioso e amoroso com o planeta e com as pessoas. Lutamos contra o trabalho escravo e a degradação ambiental e humana. Projetamos uma moda que questione, que impacte positivamente, que seja atenta e atenciosa.
As vidas por trás do que vestimos
Norteados por questionamentos, fomos atrás das mais diversas respostas. E nessa busca, as respostas se personificam em histórias. Conhecemos quatro costureiras, uma modelista, uma chefe de produção e um coordenador de tinturaria.
Meu ponto de partida foi a Cia Malwee, uma grande empresa do vestuário situada em Jaraguá do Sul (SC). A empresa tem um setor de sustentabilidade desde 2015 e não hesitaram em abrir suas portas para me receber. Acompanhada pela Indianara Jacomini, da comunicação institucional, comecei conhecendo o setor de criação, de desenvolvimento de produto e de engenharia; depois passei pelo setor de peça piloto, onde se desenvolvem as modelagens das peças, e lá conheci a Carla Guse.
A Carla tem 31 anos e é modelista na empresa há mais de 15. Metade da vida, até agora. Natural de Jaraguá do Sul, ela tem mãe costureira e nos contou que aprendeu a costurar, de verdade, através de um curso do Senai Cetiqt no Rio de Janeiro, financiado pela própria Malwee. Ficou dois anos e meio fora da sua cidade natal, e depois voltou já atuando na modelagem.
“Meu primeiro emprego […] não sabia costurar, eu me descobri aqui dentro na verdade.”
Andei mais um pouco e logo parei na seção da tinturaria. Conversei então com o Dijalma Berri, que é o coordenador da repartição. Com 40 anos de idade e 8 de Malwee, ele migrou de Massaranduba para o Rio de Janeiro e se formou técnico têxtil pelo Senai Cetiqt; além disso, tem graduação em Recursos Humanos e pós-graduação em Gestão Industrial. Dijalma me contou como é uma missão árdua essa do tingimento têxtil, ainda mais quando se fala sobre sustentabilidade. “A gente sempre precisa estar buscando essa questão de melhorar o processo, de fazer a empresa ser mais sustentável, né? Pelo fato da gente ser grande consumidora de recursos naturais.”
Posteriormente, conheci a estação de tratamento de água e segui pro setor de confecção. Lá fica a parte do enfesto e corte; a maioria dos trabalhadores são na verdade trabalhadoras e muitas entram no ofício sem prática ou domínio algum, mas aprendem em treinamentos e cursos ofertados pela própria empresa. Pude conversar com a Catia Campaina, uma mineira de 42 anos que veio com o esposo pra Jaraguá do Sul há 10. Catia sempre teve a costura como profissão e contou: “eu gosto muito de costurar, eu me sinto na verdade realizada né, porque eu acho que é muito satisfatório; às vezes é uma costurinha simples mas é uma coisa que vai vestir milhares de pessoas lá fora.”
“Mesmo se eu vejo alguém com uma etiquetinha da Malwee, eu penso ‘fui eu quem fiz’; e, mesmo se não fui eu, passou pelas minhas mãos de alguma forma.”
Um pouco mais adiante, conversei com a Ida do Amaral. Ela casou e veio de São Lourenço do Oeste, uma cidade do interior de Santa Catarina, para São Bento do Sul. Iniciou trabalhando como costureira em outras empresas e depois foi contratada pela Malwee. Está há 23 anos no mesmo setor da costura.
“Gosto de trabalhar aqui, me sinto importante. Eu me vejo importante.”
Caminhando adiante, parei na dobração e lá pude conhecer um pouco da história da Liliana Lipinski. Com 32 anos de vida e 13 anos de costura, ela é natural de Massaranduba e lá trabalhava na roça com os pais, mas mirava no sonho de trabalhar na Malwee. Preencheu uma ficha de seleção sem saber passar uma linha na máquina e foi chamada para três meses de experiência. Depois foi contratada, fez treinamentos e se desenvolveu, tornando-se líder de produção.
“Quando eu vejo alguém usando eu sinto muito orgulho. Orgulhosa mesmo de fazer aquela peça, de eu tocar naquela peça, de eu participar de algum processo dela. É orgulho mesmo.”
Depois de falar com trabalhadores e trabalhadoras de grandes linhas de produção, procurei também as histórias de quem costura em pequena escala, em casa ou em pequenos negócios. Tive oportunidade de falar então com a Suely Golon e a Luisa Macedo.
A Sueli tem 54 anos de vida e costura desde que se conhece por gente. Nasceu no interior do Paraná, em Quedas do Iguaçu, onde trabalhava com a família na roça. Sempre com o desejo de ter outro trabalho e mais independência, se mudou para Florianópolis com 23 anos e fez vários cursos: de modelagem, de costura, de estilismo. Hoje, trabalha num ateliê de vestidos de festas na mesma ilha, segue estudando e pretende ter sua própria marca um dia. Sueli vê a costura como uma forma de emancipação e afirmou: “costurar garantiu minha independência.” Além disso, ela compartilhou comigo como ainda sente o peso da desvalorização; “é uma sobrecarga em cima do profissional da costura, se exige muito e o retorno é pouquíssimo”.
“Na verdade [a costura] é a parte fundamental né, é a parte que é a base de todo esse processo, que segura.”
Por fim, pedi pra Luisa me contar um pouco da sua história. Ela é de Florianópolis e trabalha com Suely no mesmo ateliê. Com 21 anos, já costura desde os 14 e é graduada em design de moda. Iniciou nesse universo com incentivo da avó, que a levou pra fazer os primeiros cursos em São José. Hoje também tem seu ateliê e pensa em trabalhar com moda colaborativa, mas contou como sofre com a falta de valorização. “Se não é a costureira não tem roupa pronta, uma profissão que ninguém dá muito valor.” Ela ainda pontuou como, às vezes, a exploração pode se manifestar por outras vias, como não querer pagar ou deslegitimar o trabalho realizado.
“Saber fazer em casa uma roupa, ai ver que isso ali saiu da tua casa e tá andando no corpo de outra pessoa, ai tu fala ‘ah, que orgulho!’”
A trindade das palavras
Gratidão, orgulho, realização. As três palavras de ordem das conversas que tivemos com todas as entrevistadas e entrevistado.
Quando questionei como cada um se via no seu trabalho e nessa grande cadeia da moda, em nenhuma das respostas faltou o sentimento de pertencimento. De se ver importante, e mais, de se saber importante. Todos tinham consciência de como seu trabalho era valioso, embora fossem desvalorizados – e soubessem disso também.
Ainda pedi qual recado deixariam pra alguém que fosse usar algo que passou por ali, pelas suas mãos. As respostas seguiram um fio condutor: “a gente faz a moda e as peças com muito amor e carinho”, disse a Carla. “A gente fica feliz né, porque pensa ‘eu fiz essa roupa’”, foi o recado da Ida. Já a Catia lembrou nossa forma de olhar: “assim, pras pessoas olharem com mais carinho, porque a gente passa o dia todo aqui, a gente tem família, deixa filhos em casa, e sai. Todo mundo que tá aqui dedica um pouquinho. Pouquinho não, dedica bastante”.
Então se quem de fato produz sabe seu valor, porque nós insistimos em negar?
Nesses trâmites, tive a oportunidade de conhecer histórias sem traços de exploração, mas sabemos que a realidade do trabalho análogo à escravidão ainda acomete milhares de trabalhadoras e trabalhadores pelo Brasil e mundo. Quando interesses políticos e econômicos se colocam acima da vida, quando a exploração é o norte e a necessidade vira nicho.
Diante disso, incentivamos melhores práticas e processos, escolhas melhores na hora da compra, novas formas de adquirir. Mas mais que isso, o debate ultrapassa os poderes de compra, mesmo porque vários recortes de gênero, raça e classe cabem aqui. A conversa é sobre relações humanas, sobre relações com a Terra, sobre relações com nós mesmos. Muito além de comprar de marca x ou y – até porque precisamos revolucionar o alfabeto inteiro.
Quanta vida há pelo avesso do que vestimos?
Para essa reportagem, entrevistamos sete pessoas e conversamos com outras tantas. Numa simples caminhada pelo parque fabril da empresa visitada, ou ainda no pequeno ateliê de vestidos de festa, vimos como são muitas pessoas envolvidas nos processos.
Quando falamos de moda, falamos de milhões de histórias que se concretizam através dela. Plantar fibras naturais ou extrair as químicas, colher e manipular. Depois fazer disso um fio pra ser tecido, e depois fazer desse tecido uma roupa. E ainda fazer dessa roupa uma peça do nosso armário. Todas etapas têm, inevitavelmente, a atuação humana.
Quando nos damos conta disso, vemos como cada pessoa dedica parte de seu tempo e sua vida para produzir uma peça de roupa. Muitos saem de casa, deixam família, moram em outra cidade, estudam, pensam em soluções, resolvem problemas, sonham, vislumbram e se desenvolvem a partir da moda real do chão de fábrica.
Mas porquê estamos deixando que essas atuações sejam desumanizadas? Não são elas parte crucial? Porque a degradação da Natureza já parece inerente a esse sistema de moda?
Além disso, se nossas roupas são produzidas com tanto da vida de tantos, porque as tratamos com tanta banalidade? As descartamos tão fácil? Porque não ligamos pra sua origem, ou quem a fez? Não estaríamos então menosprezando tanta vida que reside ali, nelas? Ou ainda, quando condicionamos e degradamos a vida de outro alguém pra produzir, não estamos perdendo nossa humanidade?
É que as roupas não vestem só a nossa vida, mas também a de tantas outras que fizeram ela chegar até nós. Então é preciso garantir que todas sejam possíveis de serem vividas, na sua integridade e plenitude. A indústria, o empresariado e o governo também tem responsabilidade de garantir essas condições porque são grandes protagonistas desse cenário.
O Fashion Revolution é um movimento que pergunta, então essa reportagem não poderia terminar diferente. Não há solução pronta, tampouco uma fórmula. Traçamos caminhos a partir das respostas – ou falta delas -, projetamos um novo sistema e combatemos tudo aquilo que for desumano. Afinal, não poderia a moda ser uma ferramenta de emancipação, de sonhos, de realizações? Uma moda que cative, que invés de excluir traga pra perto?
Acreditamos que sim, vibramos que sim. Que celebremos o milagre da vida que existe por trás de cada peça de roupa que vestimos.
por Bárbara Poerner // Comunicação Fashion Revolution Brasil