Moda, pandemia e crise climática
Eloisa Artuso*
Recentemente lançamos o Índice de Transparência da Moda Brasil 2020, que revisa dados e informações divulgadas publicamente por grandes marcas sobre suas políticas, práticas e impactos sociais e ambientais. Este ano, em especial por conta da pandemia, buscamos entender ainda mais a fundo como as condutas de empresas, suas estratégias e modelos de negócios se relacionam direta ou indiretamente com grandes crises que o mundo enfrenta hoje, como a causada pelo coronavírus ou a climática.
Ambas afetam muito mais profundamente as populações vulnerabilizadas. A prevenção do coronavírus, assim como a proteção contra catástrofes do clima, é um luxo para grande parte das pessoas do Brasil e do mundo, muitas das quais não têm sequer acesso à água limpa, a um sistema de saúde eficaz ou a condições dignas de trabalho, estudo e moradia. Da mesma forma, inúmeros trabalhadores na cadeia global de fornecimento da moda se encontram em situação vulnerável e carecem, por exemplo, de licença saúde, assistência médica adequada ou qualquer tipo de estrutura que os permita enfrentar situações drásticas como essas. Vale lembrar que os trabalhadores que se encontram nessas condições também não ganham o suficiente para garantir seu sustento durante períodos de crises, e aqueles que vivem em dormitórios ou moradias lotadas estão ainda mais expostos a riscos como o de contaminação.
Além disso, a ONU e a OMS alegam que pandemias são consequências da destruição da natureza e a comunidade científica tem estudado como as pressões humanas sobre o meio ambiente aumentam os riscos de futuras pandemias. O aquecimento global, o aumento da população humana, a poluição e a destruição dos habitats naturais estão entre os fatores que aumentam o risco de doenças zoonóticas passadas dos animais para os humanos. De acordo com a socióloga argentina Maristella Svampa, é necessário assumir as causas ambientais da pandemia, juntamente com as sanitárias, e colocá-las na agenda política para enfrentar o enorme desafio da humanidade, representado pela crise climática, por meio de um grande pacto ecossocial e econômico.
Ao analisarmos as marcas e varejistas no Índice, observamos o que elas estão fazendo em prol de ecossistemas naturais, como por exemplo, para o combate ao desmatamento ou conservação de oceanos, e descobrimos que 25% das empresas divulgam políticas referentes às suas próprias gestões em relação à biodiversidade e conservação. Por outro lado, quando essas mesmas políticas são voltadas aos fornecedores, o número cai para 15%. No entanto, apesar de não encontrarmos um alto número de políticas, quando se trata de apresentar procedimentos e iniciativas práticas em relação ao mesmo tema, identificamos que 43% das marcas revisadas divulgam suas informações.
Nossos biomas continuam em chamas
Em 2020, as queimadas na Amazônia e no Pantanal apresentaram números alarmantes. Os incêndios que consumiram (e ainda estão consumindo) milhões de hectares desses biomas têm consequências devastadoras para a flora, a fauna e para as comunidades tradicionais e originárias. Diante do contínuo desmonte dos órgãos de fiscalização ambiental por parte do governo federal, o mês de setembro bateu recordes de incêndio, não só na região Amazônica, com o pior registro desde 2010, mas também no Pantanal, sendo o pior mês da história do bioma. Neste mês, o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) identificou 32.017 focos de calor na Amazônia, um aumento de 60% com relação a setembro de 2019. Em relação ao Pantanal, o aumento foi de 180% comparado ao mesmo período do ano passado, totalizando 8.106 focos.
Na Amazônia, o desmatamento tem como maior responsável a geração de áreas de pastagem para gado e sabemos que a pecuária não é voltada somente para a produção e consumo de carne, mas também para o couro, que movimenta uma importante área dentro do mercado de moda. O fogo, por sua vez, é a forma mais barata de se ampliar pastagens. Já no Pantanal, que já sofre com incêndios e graves períodos de estiagem e em 2020 passou pela maior seca dos últimos 60 anos, o fogo poder acontecer de forma natural. No entanto, sua avassaladora propagação indica que houve incêndios criminosos, de acordo com investigação da Polícia Federal.
Ainda, de acordo com um levantamento feito pela Repórter Brasil, entre julho e a primeira metade de agosto de 2020, queimadas iniciadas em cinco propriedades pecuaristas do Mato Grosso respondem pela destruição de uma área equivalente à cidade do Rio de Janeiro, o que corresponde a 36% da área total atingida por incêndios no Pantanal no mesmo período. Tais propriedades pertencem a fornecedores indiretos de gigantes do agronegócio. Para Mauro Armelin, diretor-executivo da Amigos da Terra Amazônia Brasileira, frigoríficos também deveriam analisar seus fornecedores indiretos com o intuito de impedir o desmatamento e as queimadas provocadas pela ação humana e explica que “se os frigoríficos não fizerem a análise completa e monitorarem os [fornecedores] indiretos, eles nunca poderão dizer que suas cadeias de produção são livres de desmatamento”.
Assim como na indústria da moda, reconhecemos a importância da transparência e rastreabilidade ao longo de toda a cadeia de fornecimento, incluindo a origem das matérias-primas utilizadas pelas marcas. Dessa forma, o Índice revelou quantas empresas estão rastreando a origem de uma ou mais matérias-primas por meio de certificações/padrões reconhecidos ou, por exemplo, através de iniciativas próprias como blockchain: apenas 15%. Além disso, nenhuma empresa analisada publica um compromisso mensurável e com prazo determinado para o desmatamento zero.
A moda e a crise climática
Por mais que a crise climática seja uma questão urgente, ainda há pouca transparência sobre o que a indústria da moda está fazendo para reduzir seus impactos no clima. Sua cadeia global contribui consideravelmente para essa questão, tendo sido responsável por cerca de 2,1 bilhões de toneladas métricas de emissões de gases de efeito estufa (GEE) em 2018, cerca de 4% do total global, o que corresponde a aproximadamente a mesma quantidade de GEE emitida por ano pela França, Alemanha e Reino Unido juntos.
O que observamos no Índice é que, assim como nas edições anteriores, as empresas tendem a divulgar mais informações sobre suas políticas do que sobre como elas são colocadas em prática. Sendo assim, 33% das marcas possuem políticas sobre energia e/ou emissões de carbono considerando suas próprias instalações. No que diz respeito à publicação anual da pegada de carbono ou das emissões de GEE de suas próprias instalações, o resultado cai para 25%. Apenas 2 empresas (5%) publicam anualmente a pegada de carbono ou as emissões de GEE de sua cadeia de fornecedores – onde se concentra a maior proporção de emissões de carbono dentro do ciclo de vida de uma peça de roupa.
São 5 as marcas avaliadas pelo relatório (13%) que publicam metas relacionadas à gestão do clima e/ou outros tópicos ambientais, com bases científicas (como as aprovadas pela Science Based Targets Initiative – SBTi). Apesar dos esforços para reduzir as emissões, a indústria da moda está contribuindo com uma trajetória que ultrapassará a marca limite de 1,5 ºC para mitigar as mudanças climáticas estabelecida pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e ratificada no acordo de Paris de 2015. Para que isso não aconteça, a indústria precisará cortar suas emissões de GEE para 1,1 bilhão de toneladas métricas de CO2 equivalente até 2030.
Trazendo para o contexto do Brasil, o país foi responsável pela emissão de 1,3 bilhões de toneladas de GEE em 2016, sendo 22% dessas emissões referentes ao uso do solo e às mudanças do uso do solo, que englobam, majoritariamente, as emissões decorrentes do desmatamento. Infelizmente nosso país, que já foi protagonista em negociações climáticas globais, atualmente apresenta a retomada da derrubada de florestas e a ausência de políticas climáticas bem definidas, especialmente em nível federal.
Precisamos agir, mas precisa ser agora. Ainda há tempo para que se reverta esse cenário e para que possamos garantir justiça social, ambiental e futuros melhores para todas e todos.
Clique aqui para baixar o Índice de Transparência da Moda Brasil 2020 e saber mais.
*Eloisa Artuso é designer, diretora educacional do Fashion Revolution Brasil e professora de Design Sustentável do IED-SP. Com um trabalho que se encontra na intersecção entre sustentabilidade, design e educação, se dedica a projetos que incentivam profundas transformações na moda. Siga @eloartuso
Arte: Fashion Revolution