A sustentabilidade para além de mais uma tendência na moda
Os últimos oito anos foram os mais quentes registrados na história do planeta. Em 2022, a média global chegou a 1,15ºC acima dos níveis pré-industriais – de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), é a oitava vez consecutiva que as temperaturas globais superam ao menos 1ºC. Os anos de 2016, 2019 e 2020 lideram esse ranking. Só para termos uma ideia, quase 400 temperaturas recordes foram registradas no Hemisfério Norte durante o verão de 2019. De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) – comitê criado pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente em 1988 – se continuarmos nessa mesma intensidade e pouca ação efetiva, as temperaturas poderão subir entre 3ºC e 5ºC até 2100. Ainda citando o mesmo relatório, produzido por mais de 800 cientistas, sendo 21 brasileiros, destacamos algumas conclusões presentes em sua última edição e que foram selecionadas pelo Observatório do Clima:A ação humana tem impacto direto no aquecimento do planeta:
As atividades estabelecidas em nossa sociedade interferem significativamente no aumento da temperatura. A influência humana provavelmente contribuiu para o aumento da umidade na atmosfera, provocando um crescimento da precipitação desde os anos 1950, e mais aceleradamente a partir dos anos 1980. Segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), o período entre 2015 e 2023 foi responsável por temperaturas elevadas e alarmantes.
O aquecimento global poderá ultrapassar 1,5ºC antes do meio do século:
Em todos os cenários compartilhados pelo relatório, o limite de 1,5ºC, sendo o mais audacioso do Acordo de Paris, poderá ser ultrapassado até 2040 se as estratégias adotadas não forem fortemente ambiciosas.
As emissões do passado já se tornaram irreversíveis:
Eventos como o aquecimento dos oceanos, o aumento do nível do mar e o degelo já são atividades sem reparação – e o aquecimento dos oceanos poderá ser até oito vezes maior do que o registrado entre 1971 e 2018. No pior dos cenários, o aumento do nível do mar, com picos de maré alta extrema, que aconteciam uma vez a cada século, poderão ocorrer uma vez por ano. Quanto às geleiras, essas continuarão perdendo massa durante décadas mesmo se a temperatura global for estabilizada.
Os impactos no médio prazo também serão significativos:
Segundo o professor de economia Eduardo Sá Barreto, “começamos essa conversa sobre aquecimento global buscando mitigação de impactos e, hoje, depois de algum tempo convivendo com o que está posto, falamos abertamente sobre adaptação”.
Estimativas regionalizadas para os próximos 30 anos apontam que todas as regiões do planeta sofrerão mudanças do clima nesse período, incluindo elevação de temperatura, estações quentes alongadas, mais ondas de calor e menos extremos de frio.
Eventos catastróficos não podem ser descartados:
Eventos de baixa probabilidade de ocorrência e alto impacto poderão ser mais frequentes diante do aumento do aquecimento, e eventos compostos – que operam de forma intercalada, com períodos de seca e máximas de calor – poderão ser mais frequentes, com alta probabilidade de ocorrência de eventos climáticos sem precedentes ainda no presente.
O clima está na moda
A indústria da moda, responsável pela emissão de, pelo menos, 4% do dióxido de gás carbônico, parece estabelecer uma lógica pouco funcional. Seguida pelo uso demasiado de matérias-primas sintéticas oriundas do petróleo – cerca de 50% das peças produzidas globalmente são feitas em poliéster; alternadas pelas tais fibras artificiais, como a viscose – que pode estar atrelada aos índices de desmatamento ou algodão – interligado ao cultivo pouco sustentável; coleções a perder de vista e completamente desconectadas de relações políticas e sociais, elaboradas de maneira pouco estratégica, descoladas de reais necessidades cotidianas e sugestionadas exclusivamente para atender os novos anseios de plataformas digitais e o ticket médio de grandes [e poderosas] corporações.
Também é interessante destacar que, assim como demais formatos mercadológicos, como o da alimentação, a moda vem subordinando territórios empobrecidos em detrimento de sua alta performance, se apropriando de uma mão de obra cada vez mais marginalizada e sucateada. Capital humano que se encontra vulnerável e “à mercê” dos mesmos eventos climáticos citados acima.
Diversas iniciativas, como: Protocolo de Kyoto, Acordo de Paris, Agenda 2030, Green New Deal, entre outros, nos asseguram que, para que possamos obter algum progresso realmente significativo, precisamos agir de maneira rápida e coletiva. A Carta da Indústria da Moda para Ação Climática – apresentada na COP 26, por exemplo, incluiu metas importantes para o setor, tais como: redução de gases de efeito estufa até 2030, plano de descarbonização, uso de energia advinda de fonte renovável, uso de matéria-prima de menor impacto e eliminação do carvão da cadeia de abastecimento.
Para facilitar esse percurso, um dos recursos que vem sendo comumente utilizado – seja por medida de boas práticas, por interesses exclusivamente financeiros ou obrigações corporativas – é a elaboração de um relatório de sustentabilidade. Documento construído com base científica, como forma de divulgação de metas, resultados e indicadores ambientais, sociais e de governança.
Empresas precisam manter seu compromisso com a transparência
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), responsável por regulamentar e fiscalizar o mercado e proteger investidores, publicou recentemente a Resolução nº 59/21 e prevê regras de governança ambiental, social e corporativa (ESG) mais rígidas para companhias abertas, como grandes varejistas da indústria da moda.
Empresas de capital aberto agora são obrigadas a reportar, e justificar, caso não o façam, determinadas métricas ESG e indicar onde essas informações podem ser encontradas on-line. Destacamos alguns itens que deverão ser levados em consideração na publicação de relatórios de sustentabilidade originados por tais instituições: o documento deve ser auditado por uma instituição terceira independente; deve indicar se a empresa realizou uma avaliação de materialidade ESG, além da divulgação de indicadores de desempenho ESG como, por exemplo, o inventário de emissões de gases de efeito estufa, bem como políticas objetivas para redução das emissões; se o documento considera os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as metas mais relevantes para empresa; se o relatório considera ou não as recomendações do Task Force on Climate-Related Financial Disclosures (TCFD) ou de outras organizações relacionadas ao clima; deve conter informações sobre diversidade e suas ações em prol do tema; se e como os riscos e práticas ESG são considerados pelo Conselho Administrativo, entre outros itens mandatórios.
Segundo uma pesquisa feita pela KPMG sobre Relatórios de Sustentabilidade, 80% das companhias analisadas globalmente elaboram relatórios. No Brasil, esse número sobe para 85%. Outro item relevante é que 72% das empresas utilizam as normas Global Reporting Initiative (GRI). Uma organização internacional independente que ajuda negócios e outras organizações a estruturarem relatórios de sustentabilidade.
Além de grandes corporações, empresas de pequeno e médio porte também podem realizar publicações periódicas indicando suas atividades. Tal documento pode ser estruturado por meio da determinação de temas mais relevantes para a organização; a compreensão amplificada do negócio e de todas as entregas concretizadas; reconhecimento de pontos positivos e aqueles de vulnerabilidade; ações emergenciais a serem implementadas; indicadores que nortearão as metas estabelecidas; objetividade quanto ao processo de desenvolvimento para atender tais demandas, clareza quanto às etapas de acompanhamento e revisão e transparência junto à sua equipe de colaboradores, fornecedores, demais envolvidos e a sociedade civil. A Agenda 2030, junto aos 17 ODS, pode contribuir para essa jornada.
A comunicação pode [e deve] ser uma ponte para a sustentabilidade. Imagem: Cottonbro para Pexels.
Escrito por Julia Codogno
Julia Codogno é comunicadora de moda e sustentabilidade. Desenvolve seu trabalho por meio de mentorias, palestras e conteúdos educativos. É criadora de um guia digital que reuniu mais de 200 marcas com iniciativas de impacto positivo e co-criadora do projeto Retecendo. Acompanhe @juliacodogno