A responsabilidade da indústria sobre o potencial sustentável do cânhamo

By Fashion Revolution Brazil

1 year ago

por Eduarda Bastian

As fibras extraídas do caule do cânhamo (termo que se refere à variedades da planta
Cannabis sativa L. com baixos teores de THC) há tempos se apresentam como alternativas excelentes à aplicações têxteis, tendo como destaque seu potencial para atingir com sucesso alguns dos objetivos de desenvolvimento sustentável. No entanto, assim como ocorre com outras fibras naturais que poderiam suprir tais propósitos, a sede de diferentes indústrias pela produção desenfreada e abordagem puramente antropocêntrica acaba por dar origem à fibras e matérias-primas que possuem, de certa maneira, suas vantagens ambientais quase que completamente anuladas.Primeiramente, é importante ressaltar que o potencial sustentável das fibras de cânhamo (quando colocamos isso acima de outras fibras naturais) foca principalmente em dois fatores: o cultivo da planta e suas qualidades de resistência e durabilidade (que contribuem para a longevidade do produto). Sobre o cultivo, se destacam a capacidade da planta de resistência à pragas, consequentemente não necessitando de pesticidas; a pouca necessidade de irrigação;  sua capacidade de melhorar a saúde do solo devido à suas longas raízes primárias (e prevenir a erosão do solo); seu potencial de apoiar a biodiversidade; sua capacidade de aumentar os rendimentos entre as culturas subsequentes e sua capacidade de fitorremediação do solo. No entanto, segundo relatório recente da Textile Exchange, o crescente interesse no cultivo da planta vem apresentando diversas questões ambientais preocupantes. 

De acordo com o relatório, além do risco de  um aumento da pressão de pragas à medida que o cânhamo é cultivado mais amplamente em sistemas de monocultura (o que consequentemente pode resultar no uso expandido de pesticidas), as emissões de gases efeito estufa podem aumentar com a ampliação da produção mecanizada (que utiliza majoritariamente fontes não renováveis de energia). Em relação aos pesticidas, alguns países já começaram a registrar produtos nocivos para serem utilizados no cultivo do cânhamo. O relatório afirma que, sem restrições sobre quais pesticidas podem ser usados ​​ou recomendações para aplicações mínimas de fertilizantes e práticas naturais de construção do solo, o cânhamo pode se tornar outra cultura intensiva em insumos, resultando na mesma extensão de emissões de gases de efeito estufa bem como na contaminação do meio ambiente por pesticidas e fertilizantes representado por outras fibras naturais, como o algodão convencional. Ademais, com o crescente interesse no cultivo e industrialização da cultura, questões relacionadas aos direitos humanos e condições de trabalho podem se tornar extremamente preocupantes. Existem também preocupações em algumas regiões sobre a forma como o cultivo de cânhamo pode afetar os direitos à terra, especialmente os dos povos originários, incluindo o seu direito ao consentimento livre, prévio e informado relativamente a quaisquer atividades que possam afetar os seus territórios. Uma consideração importante na promoção do cânhamo como cultura é garantir que isso não comprometa a segurança ou o acesso alimentar.

Algumas outras questões importantes relacionadas a conceitos equivocados sobre a fibra também são o foco do relatório, como por exemplo, o uso do termo “cultura regenerativa”. Diversas iniciativas afirmam que a planta é cultivada de maneira “regenerativa”, porém, existe uma falta de padronização sobre o termo, resultando em alegações que podem ser consideradas greenwashing. É possível observar também algumas marcas e empresas têxteis se referindo ao tecido feito com as fibras de cânhamo como um “tecido regenerativo”, o que é uma concepção completamente errônea e ilusória.

Outra questão relevante é referente a constante propaganda feita por marcas e outras iniciativas a respeito do sequestro de carbono pelo cânhamo. O relatório afirma que não é possível incluir o sequestro de carbono em fibras naturais, incluindo fibras de cânhamo, ao calcular as emissões de GEE para produtos de fibras naturais, não sendo também aceitável fazer tais afirmações em meios de comunicação promocionais que possam levar a preocupações de lavagem verde. O cultivo do cânhamo pode de fato levar ao sequestro de carbono em solos (o que não está relacionado às fibras ou tecidos). Porém, a extensão em que isso ocorre não é bem definida.

Sobre a vantagem da durabilidade e resistência da fibra, é importante ressaltar que essas qualidades se reservam às fibras de cânhamo utilizadas em seu estado longo – o que não é o caso da maioria dos tecidos comercializados atualmente. Em grande parte, as fibras de cânhamo passam pelo processo de cotonização antes de chegar às fiações, processo que reduz drasticamente as qualidades das fibras, além de deixá-las mais fracas, fazendo com que o cânhamo perca suas propriedades inerentes de alta resistência, força, toque fresco, e resistência ao pilling (Zimniewska, 2022).

“Os métodos de cultivo de cânhamo interferem diretamente em suas propriedades de sustentabilidade, não tornando possível chamar de “sustentável” uma fibra proveniente de um sistema de monocultura, não regulamentado, onde a prioridade é puramente a hiperprodução e o lucro.”

É importante ter em mente que essas preocupações derivam de uma necessidade exagerada de hiperprodução de diversas indústrias. Como mostram relatórios passados da Textile Exchange a respeito da produção global de fibras, essa produção só tem aumentado cada vez mais (de maneira completamente desnecessária). Tendo em mente que as etapas de extração e beneficiamento de matérias-primas têxteis são responsáveis pela maior porcentagem de emissão de GEE da indústria têxtil, a indústria se encontra em uma posição onde ter cuidados redobrados e repensar o modelo (e volume) de produção se torna fundamental. Os métodos de cultivo de cânhamo interferem diretamente em suas propriedades de sustentabilidade, não tornando possível chamar de “sustentável” uma fibra proveniente de um sistema de monocultura, não regulamentado, onde a prioridade é puramente a hiperprodução e o lucro. O relatório Growing Hemp for the Future – A global fiber guide finaliza afirmando que, se conduzirmos os negócios como de costume, os mesmos impactos negativos nas comunidades e no meio ambiente que vemos em outras culturas (como a do algodão convencional) podem muito facilmente ocorrer. Aqui, fica o chamado para a indústria têxtil, dentre seus vários atores (marcas, designers, tecelagens, fiações, institutos, faculdades), para uma oportunidade de fazer diferente, de pensar diferente e de não cometer os mesmos erros – sempre, imprescindivelmente, levantando questões a respeito da origem, manejo e produção da matéria-prima.

Referências:

Textile Exchange. Growing Hemp for the Future – A global fiber guide. 2023. Disponível em: https://textileexchange.org/app/uploads/2023/04/Growing-Hemp-for-the-Future-1.pdf

Zimniewska, M. Hemp Fibre Properties and Processing Target Textile: A Review. Materials 2022, 15, 1901. https://doi.org/ 10.3390/ma15051901

 

Escrito por Eduarda Bastian
@eduardabastian

Diretora Executiva da Fibershed Brasil, pesquisadora e educadora na área da moda com foco em materiais, fibras e sustentabilidade. Presidente do comitê têxtil na Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC). Oferece workshops, palestras e consultorias com o objetivo de comunicar ferramentas e conhecimentos para a necessária e urgente mudança sistêmica da indústria têxtil.