A MODA AFRO-BRASILEIRA COMO DESIGN DE RESISTÊNCIA

By Fashion Revolution Brazil

2 years ago

*por Ana Beatriz Simon Factum; UNEB/PPGAV-UFBA; biasimon@gmail.com
 
Texto publicado no Ebook – Fôrum Fashion Revolution 2020

Resumo: Em um contexto de uma Moda ainda hegemonicamente eurocêntrica, emerge em contraposição uma moda afro-brasileira, objetiva-se demonstrar que sua existência é possível devido ao legado das mulheres negras escravizadas, alforriadas ou libertas que construíram um vestir enquanto design de resistência, uma das muitas maneiras de opor-se ao sistema escravocrata que perdurou no Brasil por 300 anos. 

Palavras-chave: Design de resistência; Moda afro-brasileira; diversidade. 

Introdução 

O contexto da Moda no Brasil e no mundo na atualidade ainda está centrado em padrões estéticos eurocêntricos, ou seja, pele branca, cabelos lisos, olhos claros e em se tratando de modelos, magreza e altura são imprescindíveis. Devido a isso e a outras questões relacionadas ao racismo na moda, o Instituto Fashion Revolution Brasil lançou de 2019 o projeto “Blackstage: onde estão as negras e negros na moda?”, com o objetivo inicial de mapear as vivencias das pessoas negras neste universo, como coloca a redatora do Fashion Revolution Brasil, Barbara Poener (2019) sobre esse mapeamento: “Embasados sob os pilares da sustentabilidade, de justiça social e ambiental, compreendemos o exercício antirracista como fundamental nessa prática e conceito.” 

Em um país onde 56% da população é composta por pessoas pretas e pardas (PALHARES, 2020), a mulher símbolo das Olimpíadas em 2016, foi a Gisele Bündchen, “como se a sua beleza loura e branca fosse o ex-líbris do Brasil” (PASSOS, 2019), esse é apenas um dos inúmeros exemplos de como ainda estamos distantes  em valorizar todo o legado cultural dos povos da África subsaariana, aqui escravizados por mais de 300 anos e que mesmo com a sua extinção, continuam como vítimas do racismo estrutural da sociedade brasileira.

 Segundo a Nova História da Escravidão, as relações entre os escravocratas e os escravizados eram do tipo negociação e conflito, havendo inúmeros tipos de resistências, desde as pequenas como driblar o excesso de trabalho, chamado até os dias atuais de fazer corpo mole, até as grandes como as revoltas, dos malês, de búzios, entre outras. Fundamentada nesta compreensão, a tese de doutorado sob o título “Joalheria Escrava Baiana: a construção histórica do design de joias brasileira” demonstra que as joias usadas exclusivamente pelas mulheres negras escravizadas, alforriadas ou libertas dos séculos XVIII e XIX eram também mais um tipo de resistência a escravidão, criando-se o conceito de design de resistência, pois se tratava do seguinte projeto engendrado por estas mulheres: 

A jóia escrava no seu significado de uso resulta em um processo de impermeabilidade cultural, de resistência negra ao sistema escravocrata. Ao portar essas jóias, a mulher negra ou mestiça, escrava, alforriada ou liberta, simbolizava a manutenção de sua cultura (mesmo que adaptada), a preservação de sua auto-estima e, principalmente, sua resistência à condição de mercadoria. (FACTUM, 2009, p. 16) 

Essas joias, principalmente a mais conhecida delas, os balangandãs, compunham a indumentária também projetada por elas, que ficou conhecida e reconhecida como o traje da baiana, composto pelo torço branco ou colorido, saia rodada e camizu (pequena bata) de richelieu e o pano da Costa, levado sobre o ombro (FACTUM, 2009, p. 104). 

O conceito de design de resistência foi atualizado pela pesquisadora, desenhista industrial, pedagoga, mestra em Têxtil e Moda (EACH-USP) e doutoranda em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) Maria do Carmo Paulino dos Santos, na sua dissertação de mestrado “Moda Afro-brasileira, design de resistência: o vestir como ação politica” (2019) para demonstrar a pertinência deste conceito para entender uma moda construída pelas mulheres negras, especificamente aquelas que participaram das Marchas do Orgulho Crespo em 2015 e 2017. 

Tendo como fundamentação as pesquisas de Factum (2009) e Paulino Santos (2019), objetiva-se analisar o evento Afro Fashion Day (AFD) para investigar a possibilidade de classificá-lo como mais um exemplo de Design de resistência, tal como conceituado e atualizado pelas pesquisadoras supracitadas. E com isso demonstrar que a Moda pode e deve ser plural, respeitando toda a diversidade humana existente no mundo.

 

Afro Fashion Day: Moda afro-brasileira na passarela 

O Afro Fashion Day é um evento que acontece na cidade de Salvador-Bahia desde 2015, promovido pelo jornal Correio desde 2015, tem-se a seguir a fala do seu idealizador, já falecido:

 

“É uma grande comemoração do Dia da Consciência Negra e de Salvador, que é uma cidade totalmente inclusiva. Todo mundo tem sua semana da moda e a nossa tinha que ser afro”, afirmou Sergio Costa, diretor executivo do CORREIO e idealizador do projeto. (REDAÇÃO, 2015)

 

Vale informar que o Jornal Correio, cujo nome anterior era Correio da Bahia pertence à família do falecido ex-governador da Bahia Antônio Carlos Magalhães, foi fundado em janeiro de 1979 e faz parte do conglomerado de empresas, denominado Grupo Rede Bahia e esse é dirigido pelo seu filho Antônio Carlos Magalhães Junior. Possui um setor de projetos, o Estúdio Correio, tendo como diretora de conteúdo a jornalista Gabriela Cruz, e este é o setor do jornal responsável pelo primeiro desfile de moda negra do país (LYRIO; LIMA, 2019).    

O primeiro Afro Fashion Day ocorreu em 20 de novembro de 2015, na Praça da Cruz Caída, antiga Praça da Sé, em comemoração ao dia da consciência negra, com o seguinte formato: oficinas de maquiagem e turbantes, estandes com produtos de vestuário e artesanato, venda culinária baiana e um desfile com 40 modelos e artistas vestindo peças produzidas por 26 marcas baianas (MANUELLA, 2015). 

Na segunda edição em 2016, mantem-se o formato, porém houve uma maior participação, reuniu 46 marcas e 74 modelos. “O Grito das Ruas” foi o tema da segunda edição e o arquiteto Giuseppe Mazzoni projetou uma passarela como se fosse à reprodução de uma rua. Vale ressaltar que todos os modelos e convidados a desfilar são negros e negras e todas as marcas são de estilistas baianos. Em 2017, a terceira edição mudou de localização, acontecendo no Porto Salvador Eventos, com bate papo com especialistas, criadores e empreendedores sobre os desafios enfrentados e a importância da população negra, com 14 marcas participando e vendendo suas peças na loja colaborativa.  

Outro espaço abrigou o Afro Fashion Day 2018, tudo aconteceu no museu do Ritmo, no dia 24 de novembro de 2018, em um sábado, passando a se autodenominar de passarela mais negra do Brasil, foram 63 modelos e convidados e 48 marcas baianas, cujo tem foi a identidade através das cores. Em 2019, o desafio temático foi a sustentabilidade, as marcas participantes receberam tecido de antigas fantasias de blocos afro (estamparias criadas pelo Olodum, Filhos de Gandhy, Malê Debalê, Ilê Aiyê, Muzenza e Cortejo Afro) para reaproveitarem nas suas criações, participaram 64 modelos e convidados desfilando as criações de 47 marcas.

“Estamos celebrando a cultura negra com a ajuda de quem luta para fomentá-la todos os dias, queremos trazer pra passarela todo o orgulho e exuberância da nossa herança africana”, explica a jornalista Gabriela Cruz, curadora do AFD desde o início do projeto. (IBAHIA, 2019).

Depois desse breve histórico das cinco edições do Afro Fashion Day, nos interessa analisar em particular um dos eventos do Fashion Revolution Brasil 2020, que foi um papo gravado com ícones de uma moda baiana afro-referenciada, sob o titulo Afro Fashion Day: da Bahia para o mundo, mediados pela designer de moda, artista visual, colunista da revista raça e professora do departamento de Estudos de gênero e feminismo da UFBA Carol Barreto, participaram a jornalista Gabriela Cruz do Correio responsável pela realização do evento, a designer de moda e proprietária da marca Madá Negrif Madalena Silva e o estilista e proprietário da marca Katuka Africanidades Renato Carneiro. As perguntas a serem respondidas pelo estudo são: O Afro Fashion Day é um espaço de visibilidade e valorização da Moda Afro-brasileira? Pode-se classificá-lo como um exemplo de design de resistência? Elegeu-se essa referência devido aos participantes fazerem parte do evento estudado, condição inexistente no que se refere à autora deste artigo, não é a minha fala, não é a posição cômoda de falar do outro silenciado, é colocar eco, é reverberar as falas dele e delas sobre o Afro Fashion Day, pois inegavelmente possuem legitimidade neste falar (RIBEIRO, 2017). 

A Carol Barreto, o Renato Carneiro e a Madalena Silva foram unânimes no reconhecimento da grande apoiadora Gabriela Cruz e o quão respeitosa é sua forma de conduzir o AFD, fazendo com que as marcas de moda afro-brasileira tenham adesão ao evento, ela, a Gabriela acredita no poder transformador no jornalismo de moda e se emociona ao falar do seu feito ao longo dos anos de existência do evento. Pelo entendimento dos participantes da Moda como ferramenta de transformação, de consciência politica, de como a população negra conseguiu transformar a profunda escassez a que estão submetidos em produtos de identidade, sendo experiências para além da passarela, e com a atual condição de pandemia, o fato de estar na periferia proporcionar o encontro de saídas mais criativas, tendo o compartilhamento como caminho possível de superação e que o AFD dar visibilidade a capacidade dos negros e negras em produzir em situação de privação, sendo essa a condição a que estão submetidos no Brasil. 

Tendo a consciência de que o jornal Correio, enquanto empresa de comunicação, conseguiu transpor a linha do racismo, quebrando essa barreira e com isso reconhecer esse crédito de capital cultural, de riqueza cultural, de patrimônio da cultura negra. Inegável esse apoio e igualmente inegável os ganhos que ele proporciona ao jornal, ganhando prêmios por este projeto. Portanto, pode-se estabelecer que a adesão das marcas de moda afro-brasileira ao evento Afro Fashion Day é design de resistência, é o necessário aderir para resistir, é mais um exemplo das diversas formas encontradas pelas pessoas negras deste país a existir com o orgulho do seu vestir, tal como a Maria do Carmo Paulino dos Santos (2019, p. 144 e 145) define a moda afro-brasileira:

A Moda Afro-brasileira é um fenômeno da contemporaneidade que agrega em sua subjetividade a ressignificação da cultura africana em convergência com o contexto social e politico dos movimentos de resistência da população negra. É uma moda que recebe influencia também da cultura negra norte-americana e mistura elementos de outras culturas, ou seja, ela é hibrida. Essa moda aparece como estratégia politica no vestir do ativismo negro e instiga o reconhecimento das identidades africanas e a noção de pertencimento às origens dessa cultura. É uma moda que resgata as sutilezas desta herança cultural, valoriza a tradição de usos e costumes, a ancestralidade, o sincretismo religioso e resgata modos de fazer a roupas e artefatos têxteis por meio dos saberes e das tecnologias manuais africanas.

 

Considerações Finais 

 

A grande questão do artigo foi respondida, participar de um grande evento de Moda afro-brasileira, mesmo que produzido e patrocinado por um jornal pertencente a elite branca opressora, ainda se constitui em um Design de Resistência, devido a forma como as marcas participantes aderem a este projeto e de como ele é gestado de maneira democrática e transparente. 

Um número maior de investigações precisam ser realizadas, no sentido de se aprofundar como se dá as inúmeras formas possíveis de resistir a esse evento, mesmo aderindo a ele. Até que se consiga uma sociedade onde o fato de sermos diferentes não nos faça desiguais.

Referências bibliográficas

 

 LYRIO, Alexandre; LIMA, Fernanda. Correio está perto dos fatos desde 1979: conheça a história. CORREIO. Salvador, p. 00-00. 15 jan. 2019. Disponível em: https://www.correio24horas. com.br/noticia/nid/correio-esta-perto-dos-fatos-desde-1979-conheca-a-historia/. Acesso em: 30 ago. 2020.

 

MANUELLA, Yne. Sucesso do Afro Fashion Day inclui evento na agenda cultural da Bahia. CORREIO. Salvador, 21 nov. 2015. p. 00-00. Disponível em: https://www.correio24horas.com. br/noticia/nid/sucesso-do-afro-fashion-day-inclui-evento-na-agenda-cultural-da-bahia/. Acesso em: 30 ago. 2020. 

 

PALHARES, Isabela. Para 94% da população brasileira, negros têm mais chance de ser mortos pela polícia: brasileiros também afirmam que população negra tem poucas chances de conseguir emprego formal. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/para-94-da-populacao-brasileira-negros-tem-mais-chance-de-ser-mortos-pela-policia.shtml. Acesso em: 30 ago. 2020. 

 

PASSOS, Joana. O racismo, a moda, e a diversificação dos padrões de beleza: o exemplo de iman, top model somali dos anos 70/80. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 01, p. 01-08, 01 abr. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2019000100705&tlng=pt. Acesso em: 30 ago. 2020. 

 

POERNER, Bárbara. Raça não é recorte, mas sim um debate emergencial diante da história diaspórica em que vivemos. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/ fashion-revolution/e-impossivel-sustentabilizar-a-moda-sem-superar-o-racismo/. Acesso em: 30 ago. 2020. 

 

REDAÇÃO. Confira como foi a primeira edição do Afro Fashion Day; veja fotos. Correio. Salvador, 21 nov. 2015. Variedades, p. 01-01. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/ noticia/nid/confira-como-foi-a-primeira-edicao-do-afro-fashion-day-veja-fotos/. Acesso em: 30 ago. 2020. 

 

RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento: Justificando, 2017. SANTOS, Maria do Carmo Paulino dos. Moda Afro-brasileira: o vestir como ação politica. Dissertação de Mestrado. EACH-USP, 2019.